Abra-se o Licor de Alguidar. Está na altura de brindar a S. Gonçalinho

Nos bares e nas casas dos moradores da Beira-Mar, na cidade de Aveiro, a tradição ainda é o que era. Na festa do padroeiro do bairro bebe-se o licor artesanal com sabor a menta ou outros aromas.

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Nelson Garrido
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Início de Janeiro, na já de si “arejada” cidade de Aveiro. Nem é preciso conferir as previsões meteorológicas para saber que vai estar frio. Muito frio, caso o vento decida juntar-se, literalmente, à festa. É preciso aquecer o corpo, prepará-lo para as exigências dos festejos: andar de porta em porta, atirar cavacas do alto da capela e manter a voz preparada para cantar. E muito poucas bebidas o farão tão bem como o licor de alguidar, a “bebida oficial” do bairro da Beira-Mar e, consequentemente, dos festejos de São Gonçalinho. Feito à base de aguardente e menta (há outras opções de sabores, mas a versão original é com hortelã), este licor constitui uma das tradições da festa em honra do santo que em Aveiro é, carinhosamente, tratado pelo diminutivo.

Tem 23 a 26 graus de álcool, mas a ideia é que se beba só um bocadinho”, desvenda Rui Martins, um “filho” do bairro da Beira-Mar que em 2015 decidiu lançar-se, juntamente com a mulher, Ana Martins, na aventura de produzir e vender licor de alguidar.

A oportunidade surgiu num momento de crise, num ano em que a mulher, professora de educação física, não conseguiu ficar colocada. Começaram por projectar a abertura de uma “tartiaria”, que serviria licor de alguidar a acompanhar as fatias de tarte. “Começámos, então, a pesquisar para saber como é que poderíamos legalizar a produção do licor. Ficámos cada vez mais ligados ao licor e as tartes foram perdendo peso”, explica Rui Martins, de 43 anos.

O licor com sabor a menta, de cor verde, é o mais vendido, mas também há versões de morango e tangerina Nelson Garrido
O licor tem “23 a 26 graus de álcool, mas a ideia é que se beba só um bocadinho”, diz Rui Martins Nelson Garrido
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O licor com sabor a menta, de cor verde, é o mais vendido, mas também há versões de morango e tangerina Nelson Garrido

Assim nasceu a LA, sigla que tanto serve para a designação “licor de alguidar” como para “licor de Aveiro”. A diferença? “Como o nosso objectivo sempre passou pela exportação, e visto que seria difícil traduzir a palavra ‘alguidar’, optámos por registar como Licor de Aveiro”, explica o empresário.

O LA não tardou a ganhar prémios. Conquistou medalhas (ouro e prata) na Rússia, num concurso de vinhos e bebidas espirituosas, e foi à China arrecadar uma medalha de ouro e outra de bronze. E Rui Martins acabou por também deixar o ensino – igualmente de educação física – para se juntar a Ana na empresa, a tempo inteiro.

Actualmente produzem cerca de 20 mil garrafas por ano, número que gostariam de ver crescer nos próximos anos. “O licor é comprado, por quem não é de Aveiro, apenas como souvenir; precisamos de o dar a conhecer mais, de o divulgar como bebida que pode ser servida no final das refeições”, aponta o produtor. O licor com sabor a menta, de cor verde, é o mais vendido, mas as versões de morango e tangerina também vão tendo saída.

A aguardente bagaceira que as mulheres adoçaram

Os primeiros registos do licor de alguidar “são de 1914”, conta Rui Martins, que se habituou, desde criança, a ver as gentes do bairro a preparar a bebida. “Como estamos próximos da Bairrada, as pessoas aproveitavam a aguardente bagaceira. Os homens bebiam-na mas as mulheres, como a achavam agreste, transformavam-na num licor”, explica o empresário e produtor. O processo era todo feito num alguidar: era neste recipiente que se colocavam os ingredientes (aguardente, essência de menta ou fruta, açúcar e água) em repouso.

Em Aveiro, por ocasiões da festa em honra do padroeiro do bairro da Beira-Mar a edição deste ano estende-se por cinco dias, de 9 a 13 de Janeiro , é bebido por todos, novos e velhos. Acompanhado de uma cavaca, claro está, o outro grande ícone da festa – são lançadas a partir do alto da capela, em jeito de agradecimento ao santo. Alguns bares e restaurantes chegam mesmo a mandar fazer mini cavacas para servir o licor. Como quem serve a ginja no copo de chocolate.

Na casa de Helena Valentim, mordoma da capela de São Gonçalinho, as garrafas já estão prestes a ir para a mesa. “Com o sabor de menta e também uma versão que eu inventei, com café”, anuncia esta habitante do bairro. Mudou-se para ali aos 19 anos e não tardou a aprender a fazer, “com uma senhora mais velha”, o famoso licor de alguidar.

São vários os moradores que, ainda hoje, vão produzindo o licor para consumo próprio – Rui e Ana são os únicos produtores licenciados. Helena Valentim só produz uma vez por ano, em regra “umas cinco ou seis garrafas”, garantindo que não lhe falta a bebida para brindar no seu “santinho” – é desta forma que as gentes do bairro se referem ao santo.

Basta “beber um dedal”, sugere Rui, também ele um acérrimo defensor das tradições do bairro. A cada ano faz questão de cumprir o ritual: “andar nas arruadas, de casa em casa, a conviver com os restantes moradores e a atirar e apanhar cavacas”. Os seus quatro filhos (12, 14, 17 e 19 anos) já lhe seguem as pisadas, especialmente na arte de apanhar os doces que caem do alto da capela. “No fim da festa, vão doar as cavacas que conseguiram apanhar a instituições de idosos, levando um pouco dos festejos a quem não consegue lá ir”, declara.

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