Ana Raminhos, a pasteleira que cria paisagens comestíveis

Chefe pasteleira do restaurante Os Gazeteiros, Ana fez a sua primeira performance gastronómica na Trienal de Arquitectura, convidando-nos a “comer o espaço”.

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Daniel Rocha

A chuva e o vento da tempestade Elsa quase nos levam pelos ares no momento em que nos encontramos com Ana Raminhos à porta do palácio Sinel de Cordes, ocupado pela Trienal de Arquitectura, no Campo de Santa Clara, em Lisboa. De casaco azul forte, cachecol enrolado ao pescoço, cabelo ao vento, Ana chega trazendo um saco cheio de livros e uma pedra pesada.

Tínhamos-lhe pedido que escolhesse, como sempre para esta secção da Fugas, três objectos importantes para ela. Ana escolheu dois livros, o seu portefólio de final de curso e O Exercício Experimental da Liberdade, do curador e crítico de arte Delfim Sardo (e a estes decidiu juntar mais alguns para ajudar à conversa), e a pedra que usou na performance que fez em Novembro neste espaço, usando a comida, e neste caso os doces, como ponto de partida.

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Ana é chefe pasteleira no restaurante Os Gazeteiros, em Alfama, mas é também um espírito inquieto, com uma curiosidade que encontrou no universo da comida uma via de exploração do mundo e dos outros. Estudou nas Belas-Artes, primeiro no curso de design de equipamento e depois no de comunicação. Mas sentia que ainda não tinha encontrado o seu tema – até que, através do trabalho da eating designer holandesa Marije Vogelzang, a comida lhe surgiu como uma evidência.

Começou por ir aprender o básico da cozinha – e foi de imediato a pastelaria o que mais a seduziu – para depois poder criar a partir daí. “Nunca desejei ser chefe de pastelaria como quem pensa numa carreira, embora sempre me tenha dedicado muito à profissão.” Mas, como “o ser humano está sempre em transformação”, as inquietações levaram-na desde o início a pensar como juntar a sua ligação às Belas-Artes e o seu interesse pela pastelaria.

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O portfolio e trabalho de fim de curso de Ana Raminhos Daniel Rocha

Num percurso muitas vezes movido mais pela intuição do que pela lógica, começou com um chefe de pastelaria no Estoril, numa “cozinha cheia de homens”, onde “foi duro”, mas foi também o arranque de um projecto de aprendizagem que a levou depois a Barcelona, à escola Espai Sucre, e a seguir a Londres, onde trabalhou no The Wolseley, com chefes franceses e uma grande equipa e onde aprendeu as bases. “Tinha uma força dentro de mim, uma energia, que me levava a acreditar que fazia tudo”, recorda.

Quando regressou a Portugal, descobriu n’Os Gazeteiros, o restaurante de David Eyguesier, um espaço de liberdade onde começou a criar as suas próprias sobremesas, explorando caminhos e tentando encontrar uma forma de expressão própria. Um exemplo: “Cevada, alcaçuz, sementes e miso foi uma das sobremesas que mais gostei de criar. O desafio foi usar o alcaçuz, de que não gosto particularmente. Fiz uma bavaroise de alcaçuz enrolada em sementes partidas com flor de sal tostadas, uma pasta de sementes de girassol, miso branco, gelado de cevada e tuille de cacau.”

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O livro de Delfim Sardo que inspirou o título da performance de Ana Raminhos Daniel Rocha

Mas uma coisa é “trabalhar no prato”, onde existe necessariamente uma limitação. Outra coisa muito diferente é trabalhar num espaço. Foi assim que nasceu (Um) Exercício Experimental da Liberdade, a performance que apresentou no Palácio Sinel de Cordes e que partiu do tema da Trienal deste ano, A Poética da Razão, e das exposições integradas no evento, sobretudo uma, Agricultura e Arquitectura: Do Lado do Campo, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém. A partir daí, e da leitura de outra autora que tem como referência, Carolyn Steel (e o seu livro Hungry City), que usa a palavra-conceito Sitopia – o lugar da comida, Ana criou uma “paisagem comestível”. “Como dizia Eduardo Galeano, a utopia serve para caminharmos; mesmo que não consigamos chegar a lugar nenhum, precisamos de caminhar.”

Numa sala vazia do palácio, Ana pedia às pessoas que permanecessem junto às paredes, enquanto ela preparava os doces, usando cores, texturas, ingredientes, tudo pensado para explorar ideias sobre de onde vêm os nossos alimentos, como é que podemos ser mais conscientes relativamente à sua origem, como devemos pensar a sustentabilidade e a perda da biodiversidade, a que distância da cidade é produzida a nossa comida, que valor damos ao alimento.

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Na performance dr

Carolyn Steel “acredita que a forma como nos alimentamos precisa de utopias”. Ana quis entrar nesse jogo, abrindo às pessoas uma oportunidade de “comer o espaço”. Inicialmente em silêncio, ficávamos a vê-la deitar pós coloridos (beterraba desidratada, matcha) sobre os pratinhos com mousse de chocolate, bolachinhas de cacau e trigo sarraceno, bolo de beterraba. Depois, avançávamos para comer.

Da pedra, a célebre pedra que parece ter incrustados frutos secos, tirávamos – no final já com os dedos – o creme vermelho-sangue feito de uma redução de beterraba com vinho do Porto e que se misturava com gelado de cevada, criando uma pintura abstracta à medida que se espalhava na plataforma branca pousada no chão. Sobre as conversas, e para lá delas, o som de uma máquina de gelados, a fazer um de cacau e chá fumado, e a lembrar que existe também, longe da natureza, a produção alimentar.

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“Tudo nas nossas vidas, os nossos corpos, as nossas casas, o ambiente, o clima, tudo é paisagem. Achei que esta paisagem comestível seria a melhor forma de circunscrever o tema e a maneira mais poética de mostrar o meu trabalho.”

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Resposta rápida

Considera o seu trabalho como arte?
Não tenho pretensão nenhuma de considerar o que faço como arte, mas acho interessante levantar essa questão e pôr as pessoas a pensar nisso. Sei que não vai ser fácil obter uma resposta e, se calhar, até nem é preciso ter uma resposta. Faço porque sinto que tenho que fazer. E, no fundo, o que é arte? Nem todo o processo criativo à volta da cozinha vai ser considerado arte, mas o facto de não ter um suporte reconhecido no meio também não deve impedir que possa ser considerado arte.

O que é que as pessoas que assistem a uma performance sua levam do seu trabalho?
A única forma que temos de o levar connosco é através da memória. Mas como são alimentos, transformam-se em energia e vão, indiscutivelmente, passar a fazer parte do nosso corpo.

Como está a pensar dar continuidade a este projecto?
Gostava de pegar na pastelaria semi-industrial portuguesa e na memória e trabalhar essas duas questões.

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