Há vivências substituídas por tempo passado em frente aos ecrãs. E então?

Em consulta, existem vários comportamentos referidos pelos pais sobre os seus filhos ou filhas que nos colocam em estado de alerta e nos fazem querer averiguar melhor como estão a ser usadas as novas tecnologias.

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As crianças preferem a interacção com outros, do que com um dispositivo electrónico Leo Rivas/Unsplash

A introdução das novas tecnologias no dia-a-dia mudou drasticamente as formas de ação e interação entre as pessoas. No entanto, é importante lembrar que nada, mesmo nada, substitui um olhar carinhoso, um abraço apertado, uma conversa cara a cara, uma risota partilhada, um convívio presente, o som da palavra “amo-te”.

A Unidade de Pediatria do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, realizou um estudo de caracterização dos hábitos de utilização das novas tecnologias por crianças e jovens dos 0 aos 18 anos, através da resposta de 412 cuidadores. Listo algumas conclusões:

  • 90% das crianças e adolescentes acede às novas tecnologias;
  •  67% das crianças com idades entre os 0 aos 3 anos utiliza novas tecnologias;
  • a tecnologia mais usada é o tablet (73%), seguido do smartphone (61%), do PC (46%) e da consola (33%);
  • 69% faz uma utilização diária superior a 1h30m.

Em consulta, existem vários comportamentos referidos pelos pais sobre os seus filhos ou filhas que nos colocam em estado de alerta e nos fazem querer averiguar melhor como estão a ser usadas as novas tecnologias: “Está sempre ligada às redes sociais a ver quem fez like nas suas fotografias ou quem comentou as suas histórias” (13 anos); “O meu filho prefere ficar em casa a jogar do que conviver com os amigos, no outro dia não quis ir ao cinema para ficar a jogar” (14 anos); “A minha filha só come bem quando está a ver a Patrulha Pata no telemóvel, assim vou-lhe dando de comer sem ela refilar tanto” (4 anos); “Quando perde um jogo, diz palavrões e manda a cadeira ao chão com pontapés” (16 anos); “Quando joga online fica totalmente desestabilizado e desregulado, responde-nos mal e de forma agressiva” (8 anos); “O meu filho passou tantas horas a jogar nas férias que às tantas não sabia a diferença entre o jogo e a realidade” (11 anos).

Em 2016, a Academia  Americana de Pediatria (AAP) emitiu várias recomendações sobre a exposição a ecrãs na infância: crianças com menos de 18 meses não devem ser expostas a meios de comunicação digitais, exceto videochamadas; crianças entre os 2 e 5 anos de idade devem ter um tempo de ecrã limitado a uma hora por dia; crianças acima dos 6 anos de idade devem ter limites bem estabelecidos, garantindo que esse tempo não interfere com o sono, a atividade física nem com outros comportamentos essenciais para a saúde; e por fim, na adolescência, a recomendação é que as tecnologias não interfiram com a escola, a atividade física e outras atividades relevantes para a saúde.

Se depois de ler estas recomendações está a pensar “Que exagero! Que mal pode fazer a uma criança usar estas novas tecnologias?”, então este artigo é dirigido a si.

Os dois primeiros anos da vida de uma criança são fundamentais, uma vez que é nesta fase que são edificadas as bases do desenvolvimento futuro. É através de interações presentes, vividas e positivas, de uma estimulação sensorial variada e de experiências múltiplas que se vai fazendo a estruturação de áreas muito importantes como a emoção, a cognição, a motricidade, a linguagem.

Quando estas vivências são substituídas por tempo passado em frente aos ecrãs existem efeitos graves, reportados na literatura. E então? Então, as crianças têm maiores dificuldades no reconhecimento e na regulação das suas emoções; têm uma menor capacidade na aquisição de conceitos e de competências cognitivas; revelam atrasos no desenvolvimento da motricidade global por falta de movimentação; têm maior probabilidade de ter excesso de peso e obesidade; têm dificuldades na aquisição de linguagem, com uma menor capacidade de expressão e um número mais reduzido de vocábulos; têm menos capacidade de auto-regulação com níveis mais elevados de excitação e pouca capacidade de autocontrolo; têm alterações no ciclo do sono; têm menos curiosidade, criatividade e pensamento adaptativo; são mais propensas a desenvolver perturbações mentais ou do desenvolvimento… E a lista não termina aqui, sendo esta apenas uma pequena introdução aos riscos que o uso precoce e excessivo de ecrãs traz para a saúde.

De facto, é difícil imaginar o mundo atual sem novas tecnologias já que estas invadiram de forma indiscutível a nossa sociedade. Sem querer negar essa realidade, é preciso compreender que esses novos hábitos têm consequências graves para o desenvolvimento das crianças, sobretudo se o uso dos ecrãs se der em idades muito precoces.

Não existe nenhuma criança que prefira interagir com um dispositivo eletrónico em vez de interagir com uma pessoa “de carne e osso”. Se tal acontece é porque esse já foi um comportamento aprendido. Se tentar substituir o dispositivo eletrónico por um momento de troca, partilha e afeto, a criança vai escolher, sem margem para dúvida, o segundo. Isto porque, está comprovado, nós nascemos com uma predisposição inata para o contacto social, nós somos, antes de tudo, seres sociais.

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