A elite do Rio de Janeiro aprova a retórica da violência, diz deputada

Mónica Francisco, ex-assessora de Marielle Franco e agora ela própria deputada da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, acusa o governador Wilson Witzel de praticar uma política de confronto, que “produz um número indecente de mortos.”

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Manifestação contra a violência policial no Rio de Janeiro, da qual são vítimas um número desproporcional de negros Nacho Doce/REUTERS

A elite da sociedade do Rio de Janeiro, que vive longe das favelas, compactua com a retórica violenta do governador Wilson Witzel, diz a deputada estadual Mónica Francisco, ex-assessora da também deputada da Assembleia Legislativa do Rio, Marielle Franco, morta a tiro em Março de 2018.

“Tem sido dramática a situação do Rio de Janeiro no que se refere à política de segurança pública ou, neste caso, de ‘insegurança’ pública. Temos um programa que mantém o confronto, produz um número indecente de mortes. De Janeiro a Agosto, foram 1249 mortes de jovens, negros e periféricos neste estado, por causa da violência policial”, detalhou a deputada.

Corpo inimigo

“Se há uma actuação dessas é porque parte da sociedade aprova o discurso do medo, da insegurança, da produção de mais medo. Aprova todo um aparato mediático produzindo uma sensação de medo constante, a eleição de um sujeito que fala de um corpo inimigo, que geralmente é um corpo negro, jovem e masculino. Parte da sociedade compra, apoia, aprova e saúda esse tipo de prática do estado”, afirmou Mónica.

Eleita com mais de 40 mil votos no sufrágio de 2018, Mónica Francisco é deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

Caracteriza-se como uma “mulher preta, periférica, evangélica progressista”, que usará a o discurso para fazer ecoar “as vozes periféricas, feministas, LGBTQIs [sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgénero e Intersexo], faveladas e de todas e todos que vivem no Rio de Janeiro”.

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"Quem morre são jovens, mulheres e crianças negras, periféricas e faveladas", diz Mónica Francisco DR

A deputada, que nasceu no morro do Borel, uma favela na Zona Norte do Rio, cedo se dedicou à luta contra a desigualdade e pelos direitos humanos, militância essa que fez com que o seu caminho se cruzasse com o da vereadora Marielle Franco, assassinada a tiro em Março do ano passado, numa rua do Rio de Janeiro, depois de participar num acto político com mulheres negras.

Mónica trabalhou lado a lado com Marielle, como sua assessora, mas foi o seu homicídio o ponto de viragem, que a levou a sentir urgência em se candidatar a deputada na Alerj.

Enquanto cerca de 40 mil pessoas elegiam Mónica Francisco como deputada do Rio de Janeiro, num outro espectro político totalmente oposto Wilson Witzel, do Partido Social Cristão (PSC), era eleito governador do estado, com mais de quatro milhões de votos.

Desde que assumiu o cargo de governador, em Janeiro, Witzel, alinhado com a política de segurança do Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, adoptou uma forte retórica de combate ao crime, baseada no uso da violência, com o número de pessoas mortas pela polícia a aumentar significativamente em comparação com os anos anteriores.

Apenas nos primeiros dez meses deste ano, 1546 pessoas foram mortas por intervenção policial no Rio de Janeiro, o maior número desde 1998, quando o Instituto de Segurança Pública (ISP) iniciou a sua série histórica.

Outro dos números que choca é o de crianças mortas por balas perdidas naquele estado: foram seis desde o início do ano.

“O governo de Witzel e as suas polícias têm produzido, numa população específica, o terror. Porque quem morre são jovens, mulheres e crianças negras, periféricas e faveladas. Temos o mesmo grupo populacional a ser vítima de morte por armamento pesado, pelo estado, que tem um discurso extremamente violento, de abate de pessoas, com o uso de termos que não deveriam ser usados nem para animais”, frisou Mónica.

Racismo

“É uma prática extremamente racista, um projecto higienista e genocida da segurança pública no estado do Rio de Janeiro”, acrescentou a deputada em entrevista à agência Lusa.

Após ser eleito, em Outubro de 2018, Witzel, um ex-juiz federal, deu uma polémica declaração, ao afirmar que a polícia iria “fazer o correcto: mirar na cabecinha dos bandidos e… fogo. Para não ter erro”.

Para Mónica Francisco, o racismo está entranhado na essência do Brasil, assegurando que existe um “choque social” devido à proximidade das favelas com as “áreas oficiais” das grandes cidades.

“O preconceito com as favelas e com as pessoas que lá vivem é recorrente no Brasil e, no estado do Rio de Janeiro, com um grande número de favelas, em que a população favelada chega aos dois milhões, e que estão próximas das áreas ditas oficiais da cidade. Isso provoca um choque social muito grande”, indicou a deputada.

“As favelas foram construídas sobre um forte estigma, e isso mantém-se até aos dias de hoje. Há sim, a criminalização desses espaços e da população que neles vivem”, acrescentou.

A activista, que tem conhecimento directo de como é viver numa favela, afirma que os habitantes daqueles bairros têm uma “existência trágica”, não tendo forma de “escapar” à pobreza e violência constantes.

“Não existe possibilidade [de sair das favelas]. Não existe, vão morrer. É duro dizer isto, mas para onde poderiam ir? Não têm outro lugar. Submetem-se, naturalizam a violência como uma estratégia de sobrevivência. As pessoas perguntam: ‘como é que acabou de haver um tiroteio e as pessoas estão com a música alta na favela?’. Mas essas pessoas já estão adoecidas, em todos os sentidos. Vivem uma existência trágica”, lamentou Mónica.

“Uma das maiores violências que sofrem é a destruição de qualquer perspectiva de futuro. Não é à toa que no Brasil os jovens e as mulheres, negros e negras, são os mais desalentados, porque sabem que não terão possibilidade de sair desta situação de maneira nenhuma”, assegurou.

Enquanto deputada pelo PSL, Mónica defende uma política de segurança pública que “dê prioridade à vida”, e que recorra ao uso da inteligência e investigação ao invés de armamento pesado, e de “invasões a favelas em horário escolar”, tal como tem acontecido no governo de Witzel.

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