Trinta anos depois, ainda falta fazer “cumprir” a Convenção dos Direitos da Criança

O PÚBLICO falou com quatro especialistas em direitos das crianças para perceber o que colocariam como maior prioridade num contexto de reformulação do actual diploma. Houve quem referisse a necessidade de reconhecer a adopção como uma forma de família e não de protecção, o fim da institucionalização como solução universal ou o reforço do direito à participação.

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Nelson Garrido

Esta quarta-feira assinala-se o 30.º aniversário da Convenção dos Direitos da Criança. Os direitos fundamentais de qualquer criança do mundo ficaram, desde 1989, assentes em 54 artigos e quatro pilares fundamentais: direitos à sobrevivência, direitos relativos ao desenvolvimento, direitos relativos à protecção e direitos de participação. Portugal ratificou a Convenção em 1990. Mas o que é que ainda falta cumprir?

O PÚBLICO falou com quatro especialistas em direitos das crianças para perceber o que colocariam como maior prioridade num contexto de reformulação do actual diploma. Porque, tal como quase todos identificam, ainda falta “fazer cumprir” alguns pontos da Convenção.

Álvaro Laborinho Lúcio: falta conceber a adopção não como uma “forma de protecção”, mas como um tipo de família

Juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça. Tem como um dos seus maiores centros de interesse os direitos da criança e a “definição daquilo que é a criança”, disse, numa entrevista ao PÚBLICO em 2018.

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“Relativamente ao texto da convenção da ONU sobre os direitos das crianças, diria que falta, em primeiro lugar, levá-lo concretamente à prática. O texto comporta valores que é fundamental que sejam integrados no dia-a-dia para que a convenção faça efectivamente sentido.

Dou um exemplo: da convenção resulta claramente que a criança passa a ser um sujeito de direito. Isto obriga necessariamente que nós criemos e interiorizemos uma cultura da criança como o outro, dando-lhe reconhecimento como sujeito, estabelecendo uma relação dialogada com ela e dando sobretudo — e esse é um dos valores fundamentais — o direito à participação. O direito a ser ouvida, a ter voz.

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É fundamental também que façamos agora, já em sede de uma eventual revisão desejável dos direitos da criança, uma correcção ao conceito de protecção da criança desprovida de meio familiar normal. A convenção diz-nos que há, por um lado, a família e, por outro, na falta dela, um conjunto de instrumentos de protecção, sendo que um deles é a adopção. Agora, julgo que já caminhamos o suficiente para dizermos que adopção faz parte da família. Quando os progenitores não têm condições de poderem ser a família, então a família tem de ser a de adopção. Portanto, a adopção não é uma protecção da criança, é uma forma da família da criança.”

Dulce Rocha: ainda é preciso “reforçar o direito à participação” para que não se fique pela “mera audição”

Magistrada e presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC).

“Ainda não conseguimos cumprir o que está na convenção, mas para uma eventual revisão, acho que era necessário densificar melhor o sentido do direito à participação, no sentido de reforçar o direito à participação das crianças de maneira a que não nos contentemos com uma mera audição. 

A Convenção dos Direitos das Crianças aponta no sentido de que a criança deve ser parte do seu próprio destino, e eu penso que essa é uma matéria na qual é necessário investir. Talvez explicar melhor que não basta o direito à palavra meramente formal, mas que a vontade da criança, principalmente quando falamos de adolescentes, é muito importante.

Há vários exemplos de jovens de 16 anos que têm feito maravilhas: por exemplo a Malala [Yousafzai, prémio Nobel da Paz em 2018] e Greta Thunberg mostram bem as capacidades extraordinárias que tiveram para mobilizar as pessoas em torno de uma ideia. 

Tudo isso tem depois implicações no resto, por exemplo, as crianças terem uma palavra a dizer quando há uma regulação do exercício do poder paternal. O direito à participação congrega em si uma série de ingredientes e está ligado a outros direitos, mas esse consubstancia e bem o valor e o estatuto que queremos dar à criança no século XXI.”

Maria Barbosa-Ducharne: colocar as crianças em instituições é uma solução que não serve para todas

Professora auxiliar da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. É responsável pelo Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adoção (GIIAA) na mesma faculdade.

“Eu acho que há um direito que está prescrito na convenção que é o direito de toda a criança crescer em família que, em Portugal, é pouco respeitado. As crianças que não podem crescer na sua família de origem são na sua esmagadora maioria colocadas em instituições e o arranque de um programa de famílias de acolhimento está a tardar em arrancar em Portugal. 

Falo do direito a ter uma família que seja atenta e que responda adequadamente às suas necessidades e que lhe proporcione as melhores condições possíveis de crescer, de se desenvolver plenamente e de crescer em felicidade. 

Acho que neste momento crítico que estamos a viver em Portugal, um momento em que continuamos a ter 97% das crianças retiradas a crescer em instituições — e eu não estou a demonizá-las, elas são respostas necessárias num sistema de protecção. Mas são respostas para um determinado perfil de criança, não para a maioria. Há uma minoria de crianças que precisa de uma resposta institucional. A maioria das crianças precisa de crescer numa família.”

Margarida Gaspar de Matos: as crianças têm direito a um “ecossistema saudável”

Psicóloga e investigadora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. É autora de estudos internacionais sobre crianças e adolescentes, os seus hábitos, costumes e a sua saúde e coordenou a parte portuguesa do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC), da Organização Mundial de Saúde.

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“O cumprimento da Convenção é uma direcção... Há coisas que não eram reconhecidas em 1989 e que por isso agora parecem faltar, e isso vai acontecer sempre. Estou a lembrar-me do direito a um planeta, a um ecossistema saudável.

Falamos agora muito de justiça intergeracional para falar do direito das novas gerações a ‘herdarem’ situações socioecológicas sustentáveis… Falamos de saúde planetária para falar da sustentabilidade do planeta em condições de habitabilidade saudável. Falamos de poluição digital e das questões ecológicas e éticas associadas a este incremento exponencial (e tão civilizacional e tão positivo) da utilização de tecnologias digitais de informação e comunicação. Falamos dos objectivos do desenvolvimento sustentável e da globalização. Torna-se claro que não só alguns pontos não estão contemplados porque só agora estão a ser evidenciados, mas também que nesta sociedade global onde diminuímos distâncias físicas, parecemos incapazes de diminuir (ou querer diminuir) a equidade. E lembramo-nos que a Convenção não é cumprida em todas as crianças dos países, nem em todos os países.

Eu acrescentaria e colocaria como prioridade o acesso à saúde planetária; o acesso à literacia digital; a protecção da poluição digital; e a equidade através estas distâncias terrestres, agora tão mais próximas no que diz respeito aos pontos já constantes nos objectivos do desenvolvimento do milénio e na Convenção dos Direitos das Crianças.”

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