Novo ouro, nova religião, o colonialismo de sempre na Bolívia

O crescimento e interferência das igrejas evangélicas na política do continente americano não é novidade.

Em 2012, a historiadora Sílvia Cusicanqui escreveu um artigo, onde desenvolveu críticas profundas ao governo Morales e à sua política de “pacificação” e conciliação de classes que ia em contramão de muitas das reivindicações daqueles que o elegeram. Na altura Cusicanqui alertava que não era suficiente criticar o Estado do MNR da década de 1950 (que levou a uma escalada da corrupção), se a memória estatal do colonialismo interno agora já não se limitava mais a um partido, tendo-se transformado em património da classe política e do sistema partidário como um todo.

Entre revoluções inacabadas e descaminhos, a verdade é que o desenvolvimento económico de Morales deu-se às custas de uma conciliação de classes e do extrativismo das riquezas naturais nos territórios dos indígenas. O país sempre esteve no centro da geopolítica energética com grandes reservas de gás natural. Agora, ainda mais, por deter as maiores reservas naturais de lítio (novo ouro), matéria-prima base para as baterias dos novos automóveis elétricos, que viu o seu valor quadruplicar nos últimos anos. Recentemente, o anúncio da descoberta de novas reservas foi acompanhado com o comunicado de uma nova política económica de desenvolvimento. A Bolívia usaria o lítio para promoção da soberania da nação, promovendo o desenvolvimento industrial e tecnológico interno, com foco na indústria de transformação e na venda de baterias em vez da venda da matéria-prima. Tudo isto a par da sua já recente diversificação do seu comércio: novos acordos de comércio com a China, e o cancelamento de contratos de extração de lítio com um consórcio Germano-Canadiano.

O atual golpe de Estado militar na Bolívia é permeado por interesses económicos paralelos do imperialismo ocidental e das forças mais reacionárias do país. Teve a ajuda da Organização dos Estados Americanos (OEA), que nas horas que antecederam o golpe, incendiou os protestos de rua com declarações sobre eventuais fraudes eleitorais. Este facto ironicamente foi desmentido pelo Centro de Pesquisa Económico e Político de Washington, que emitiu um comunicado em que uma análise estatística feita com 500 modelos diferentes, mostrou como certa a vitória de Evo Morales no primeiro turno e, portanto, ser falacioso o discurso de fraude eleitoral.

Obviamente que, mesmo que a Bolívia seja um país com claras raízes neocoloniais e subordinado à exportação de commodities, nada é só geopolítica. As tensões nacionais e a estratégia política seguida por Morales contribuíram para esta derrota perante as forças mais reacionárias. O golpe só poderia ter sido evitado com o retorno ao processo revolucionário do início do milénio e da expropriação das forças por trás, a saber, a burguesia da Média Luna (região do país, cuja característica comum é que a maioria da sua população não é indígena).

Brasil e EUA, liderados por mandatários de extrema-direita, reconheceram Jeanine Áñez como presidente interina, posição que não diferiu muito da declaração da UE que recentemente defendeu a posse da senadora para “evitar o vazio do poder” e “convocar novas eleições”. A falta de uma transformação real do Estado e principalmente das forças militares abriu espaço para uma segunda colonização. A crescente influência das igrejas evangélicas neopentecostais na política tem tido um papel fundamental no avanço da extrema direita, assim como no controle social e ideológico das massas. A nova “presidente”, Áñez, que afirma sonhar com uma Bolívia “livre de rituais satânicos indígenas”, acrescentando que a cidade não é lugar para indígenas e que estes têm de voltar para a selva, encontra lugar no silêncio conivente dos “democratas” que sobrepõem seus interesses económicos à barbárie. Este discurso fomenta as posições políticas do mandatário do Brasil, Jair Bolsonaro, que com seu governo permeado por um moralismo evangélico e anti-indigenista, em poucos meses tem seu mandato marcado por um crescimento massivo de ataques às reservas naturais do país, além do extermínio de várias lideranças indígenas que lutam pela preservação de suas reservas.

Mas, o crescimento e interferência das igrejas evangélicas na política do continente americano não é novidade. Na Colômbia o apoio ao “Não” no referendo dos acordos de paz entre o governo e a ex-guerrilha FARC, em outubro de 2016; no respaldo ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2017; na controversa mudança da embaixada da Guatemala em Israel, desde Tel Aviv para Jerusalém, em maio de 2018, com justificação religiosa. No seu conjunto, estas foram manifestações dessa crescente influência, que nos deixaram alertas para o facto de que alienação e a instrumentalização da religião na política quase sempre andam de mãos dadas.

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