Como uma colecção de cassetes de Ágata a Zeca ganha vida na montra de uma galeria

O que têm em comum as edições em cassete de Amália Rodrigues, Nel Monteiro e Madredeus? Joana Carneiro, do projecto Pop’lar, mostra parte da sua colecção privada numa exposição inserida na Porto Design Biennale. Pop’lar — de Ágata a Zeca explora o design das capas de cassetes, através de associações inesperadas.

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Joana Carneiro tem 26 anos e é design gráfica Nelson Garrido

As primeiras cassetes que Joana Carneiro comprou custaram-lhe 20 cêntimos, na portuense Feira da Vandoma, e juntaram-se a outras, poucas, que tinha guardadas da infância. “Comecei a comprar porque lhes achava piada, era um objecto mesmo barato”, conta ao P3. Nem sequer tinha (ainda) um leitor de cassetes para as ouvir, mas sentia-se atraída pelas capas destes objectos “transversais”, que via “como se fossem mini-posters”. Depois apercebeu-se de associações inesperadas entre Amália Rodrigues, Nel Monteiro e Madredeus, para lá do óbvio facto de serem nomes conhecidos da música portuguesa. “Todos têm capas de cassetes em que estão a cantar ao microfone.” Este foi um dos aspectos estudados no projecto que decidiu criar, o Pop'lar, uma colecção de cassetes de música portuguesa disponível para consulta online e, a partir de 16 de Novembro, em exposição na Senhora Presidenta, no Porto, no âmbito da Porto Biennale Design. Mas há mais pontos comuns entre cantores ou conjuntos portugueses que editaram cassetes nos últimos 40 anos — sobretudo no que ao design do objecto diz respeito.

“Gosto desta ideia de fundir as coisas: há muita repetição, mesmo entre géneros musicais diferentes”, aponta Joana, 26 anos, designer gráfica que se dedicou a estudar, no mestrado da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, os aspectos não-musicais da sua colecção — privada, mas não herdada, e partilhável quando as cerca de 400 cassetes saem das caixas e se fazem ouvir em festas no Porto e em Lisboa. Nos anos 90, quando Joana Carneiro nasceu, este já não era o formato mais popular; esse lugar estava ocupado pelos CD e os vinis ainda não tinham recuperado o estatuto de formato para melómanos.

“Na minha família, nunca tivemos vinis em casa, houve sempre mais cassetes, eu fazia as minhas mixtapes, tenho ainda bem presente esse universo”, recorda. E esse “universo”, como Joana lhe chama, inclui — mas não se limita — a música popular portuguesa, tantas vezes apelidada de “corriqueira”, e os inconfundíveis expositores de cassetes, presentes em tantas bombas de gasolina, supermercados e tabacarias por Portugal fora. Pop’lar — de Ágata a Zeca, a exposição que idealizou juntamente com o Mecha Studio, com quem colabora, aposta, precisamente, nos expositores giratórios enquanto meio de interacção. “De certa forma, vai ser possível interagir com o conteúdo”, diz, sem revelar muito.

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Nelson Garrido

A mostra integra a série de projectos-satélite da Porto Design Biennale e vai ocupar a Senhora Presidenta até 5 de Dezembro, a partir da montra. Foram construídos seis expositores inspirados nos tradicionais e a ideia é que, “como a galeria está voltada para a rua, a exposição funcione logo a partir da montra”. Uma vez lá dentro, o visitante é convidado a fazer um percurso e interagir com as cassetes expostas, que podem ser escutadas. “A ideia é que esse som, depois, povoe a galeria.” Ao todo vão ser 72 as cassetes originais em mostra — e 340 as capas reproduzidas. “Interessa-me trabalhar a cassete enquanto objecto altamente reproduzível, seja por ser produzido em massa ou porque as pessoas depois o gravam e desgravam”, explica.

Nelson Garrido
Nelson Garrido
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Nelson Garrido

Sempre sem fazer julgamentos musicais. No Pop'lar convivem, lado a lado, trabalhos de Ágata, Fausto, Amália Rodrigues ou Excesso. Estão todos no mesmo plano — basta que tenham elementos imagéticos de contacto. Quando Joana é convidada para tocar algumas das suas cassetes ao vivo — como aconteceu na última festa Suave Geração, no Porto, e no magusto na fábrica da cerveja Musa, em Lisboa —, gosta de passar Banda do Casaco (uma banda que aprecia e é pouco conhecida junto do público mais jovem) e o Cancioneiro Popular Português, de Michel Giacometti, uma edição “rara” do Círculo de Leitores. “Há muita gente que nem nota que estou a usar um leitor de cassetes, só quem se aproxima percebe”, continua. “Ficam surpreendidos, claro, mas também há quem reconheça o ruído característico.”

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Voltemos à democratização do design, um conceito pelo qual Joana se interessa e procura aprofundar no site do Pop'lar, onde cada um de nós pode ordenar a colecção segundo vários filtros: ano de edição, tipografia, layout da capa, cores predominantes, tema. Os conjuntos de folclore tendem a preferir o vermelho na capa; os cantores pimba, o azul-ciano. As bandas apostam em fotografias de grupo, os compositores e intérpretes a solo focam-se mais na própria imagem. “Muitas edições da Orfeu, por exemplo, sobretudo dos anos 70, como Zeca Afonso, Vitorino e Fausto, preferem a ilustração”, vai enumerando. Comum, também, é a capa da cassete ser uma adaptação da edição em vinil, o que gera desafios de formato.

“Não estou aqui para dizer o que é bom ou mau, e o que eu ouço em casa é diferente do que tenho na minha colecção”, ressalva. “Mas tudo é música portuguesa, não há preconceitos.” Assim se explica Amália, Ágata e Sérgio Godinho, lado a lado em casa de Joana ou ouvidos numa tarde por aí, a partir de um leitor de cassetes que quase parece de brincar ou um walkman a piscar os olhos à nostalgia dos anos 90.

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