Como vão ser os incêndios no pós-aquecimento global da Terra

A Terra Inabitável, do jornalista norte-americano David Wallace-Wells, chega esta terça-feira às livrarias numa tradução para português pela editora Lua de Papel.

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Incêndio florestal em Vale de Cambra (Portugal) a 15 de Outubro de 2017 Paulo Pimenta

No Sul da Califórnia, o período entre o Dia de Acção de Graças e o Natal deve ser o início da estação das chuvas. Em 2017, não foi. O incêndio Thomas, o pior dos que varreram a região nesse Outono, alastrou 20 mil hectares num só dia, acabando por obrigar à evacuação de mais de 100 mil pessoas. Uma semana depois de ter deflagrado, permanecia, na sinistra linguagem meio clínica dos incêndios, apenas “contido a 15%”. Numa abordagem poética, não foi uma má estimativa do controlo que temos sobre as forças das alterações climáticas que provocaram o fogo e as muitas outras calamidades ambientais de que ele foi um arauto apocalíptico. Isto é, um controlo praticamente nulo.

“A cidade a arder é a mais profunda imagem que Los Angeles tem de si”, escreveu Joan Didion em “Los Angeles Notebook”, incluído em Slouching Towards Bethlehem (Descontraidamente rumo a Belém), uma colecção de ensaios publicada em 1968. Mas a marca cultural não será aparentemente assim tão profunda, uma vez que os incêndios que deflagraram no Outono de 2017 produziram, em títulos de jornais, na televisão e em mensagens de texto, um refrão de espanto, construído a partir dos adjectivos “impensável”, “sem precedentes” e “inimaginável”. Didion escreveu sobre os fogos que tinham varrido Malibu em 1956, Bel Air em 1961, Santa Barbara em 1964, e Watts em 1965; em 1989, actualizou a sua lista com “Fire Season” (“A Estação dos Incêndios”), na qual descreveu os de 1968, 1970, 1975, 1979, 1980 e 1982: “Desde 1919, quando o condado começou a manter registo dos seus fogos, algumas áreas arderam oito vezes.”

A sucessão de datas avisa‑nos, por um lado, para não sermos alarmistas em relação aos incêndios – contrariando uma espécie de caricatura do pânico ambiental californiano, em que todos os observadores estão completamente consumidos pela presente catástrofe. Só que os fogos não são todos iguais. Cinco dos 20 piores incêndios da história da Califórnia atingiram o estado no Outono de 2017, um ano em que se registaram pelo menos nove mil fogos, que consumiram mais de 500 mil hectares.

Nesse Outubro, no Norte da Califórnia deflagraram em dois dias 172 incêndios – causando uma devastação tão cruel e avassaladora que, em dois jornais locais, surgiram dois relatos diferentes sobre dois casais de idosos que, em desespero, se refugiaram nas suas piscinas, enquanto as chamas devoravam as suas casas. Um dos casais sobreviveu, e saiu da água ao fim de seis horas terríveis, deparando com a sua casa transformada num monumento de cinzas; na outra história, só o marido saiu vivo – a mulher com quem estava casado há 55 anos morreu‑lhe nos braços. Foi natural que os norte-americanos cometessem enganos, misturassem as duas histórias e se confundissem ao trocarem histórias de horror na sequência desses incêndios; afinal, o clima de terror era tão generalizado que permitia variações sobre um tema que, ainda no mês anterior, Setembro, parecia impossível de acreditar que pudesse acontecer.

O ano seguinte proporcionou outra variação. No Verão de 2018, os fogos foram em menor número, apenas seis mil no total. Mas só um deles, composto por uma rede inteira de incêndios que se uniram, e designado por Complexo Mendocino, queimou, sozinho, mais de 200 mil hectares. No total, mais de 520 mil hectares do estado ficaram em chamas e o fumo cobriu quase metade do país. Na Colúmbia Britânica, para norte, as coisas foram piores: arderam mais de 1,2 milhões de hectares, produzindo fumo que, se tivesse seguido o padrão de anteriores fogos canadianos, poderia ter atravessado o Atlântico e chegado à Europa. Depois, em Novembro, aconteceram o incêndio Woolsey, que obrigou à evacuação de 170 mil pessoas, e o incêndio Camp, que de algum modo foi ainda pior, avançando ao longo de mais de 52 mil hectares e incinerando com tal rapidez uma localidade que as pessoas levadas dali à pressa se viram a sprintar entre carros a explodir, com os sapatos de ténis a der‑ reterem no asfalto enquanto corriam. Foi o mais mortal dos fogos californianos, um recorde que tinha sido fixado quase um século antes, pelo incêndio de Griffith Park, em 1933.

Se estes incêndios tinham tido precedentes, pelo menos na Califórnia, então o que queríamos exactamente dizer quando afirmámos que não tinham precedentes? Como o 11 de Setembro, que se seguiu a várias décadas de fantasias mórbidas norte-americanas a propósito do World Trade Center, esta nova classe de terror foi olhada por um público horrorizado como uma espécie de cumprimento de uma profecia do clima, imaginada pelo medo e agora tornada real.

Essa profecia tinha três partes. Em primeiro lugar, a simples intuição de horrores climáticos – uma premonição especialmente bíblica quando a praga é um incêndio descontrolado, como uma tempestade de pó de chamas. Em segundo, o alcance crescente dos fogos, que agora, em boa parte do Oeste, podem parecer que estão apenas à distância de uma rajada infeliz de vento. Mas talvez a mais terrível das formas pela qual os fogos pareceram confirmar os nossos pesadelos cinematográficos fosse uma terceira: o caos climático era capaz de derrotar as nossas fortalezas mais arrogantes – isto é, as nossas cidades.

Com os furacões Katrina, Sandy, Harvey, Irma e Michael, os norte-americanos ficaram a conhecer a ameaça de cheias, mas a água é apenas o começo. Nas cidades prósperas do Ocidente, até as pessoas conscientes das mudanças ambientais têm passado as últimas décadas a caminhar pelas ruas e a conduzir pelas auto-estradas, a passear pelos supermercados bem abastecidos e a navegar pela Internet que está em toda a parte e a acreditar que tínhamos construído a nossa existência separada da natureza. Mas não. Los Angeles, uma paisagem de sonho erguida em deserto inóspito, tem sido sempre uma cidade impossível, como Mike Davis escreveu de forma tão brilhante. A visão de chamas a lavrar dos dois lados da estrada I‑405, com as suas oito faixas, lembrou‑nos de que ainda é impossível. Na verdade, é uma cidade cada vez mais impossível. Durante algum tempo, acreditámos que a civilização estava a encaminhar‑se noutra direcção – primeiro tornando possível o que parecia impossível, e depois fazendo com que isso fosse estável e rotineiro. Com as alterações climáticas, em vez disso, estamos a encaminhar-nos no sentido da natureza, e do caos, para um novo domínio fora dos limites das analogias de qualquer experiência humana.

Duas grandes forças conspiram para nos impedir de normalizar incêndios como estes, embora nenhuma delas seja exactamente uma causa para festejar. A primeira é que as condições extremas do clima não nos permitem isso, uma vez que ele não estabiliza – e por isso é seguro apostar que, daqui a uma década, estes incêndios, que agora preenchem os pesadelos de todos os californianos, serão olhados como “o velho normal”. Como os bons velhos tempos.

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A segunda força está também contida na história dos fogos: a forma como a mudança no clima está, por fim, a atingir-nos perto da nossa casa. E de algumas casas bem especiais. Os incêndios californianos de 2017 queimaram a colheita vinícola do estado, varreram a fogo casas de férias que valiam milhões de dólares e ameaçaram tanto o Museu Getty como a propriedade de Rupert Murdoch em Bel‑Air. Talvez não haja dois símbolos melhores da arrogância do dinheiro norte‑americano do que estas duas estruturas. Não longe dali, à medida que os incêndios se aproximavam, a risonha fantasia infantil da Disneylândia foi rapidamente coberta por um céu cor de laranja arrepiantemente apocalíptico. Os ricos da Costa Oeste ainda apareceram nos campos de golfe locais, a baloiçarem os seus tacos apenas a alguns metros das chamas, em fotos que não poderiam ser encenadas de uma forma mais perfeita para sublinhar a indiferença da plutocracia do país. No ano seguinte, em histórias publicadas no Instagram, os norte-americanos viram os Kardashian ser retirados, e depois souberam das forças de bombeiros privadas que eles tinham contratado, enquanto o resto do estado estava dependente de condenados recrutados à força, a receberem a miséria de um dólar por dia.

Por causa de acidentes de geografia e por força da sua riqueza, os Estados Unidos têm, até agora, sido protegidos da maior parte dos casos da devastação que as mudanças no clima já infligiram, essencialmente em zonas do mundo menos desenvolvido. O facto de o aquecimento estar agora a tocar os seus cidadãos mais ricos não é apenas uma oportunidade para feias manifestações de regozijo liberal; é também um sinal de como ele está a atingir-nos com força e de forma indiscriminada. De repente, está a tornar‑se muito mais difícil protegermo‑nos daquilo que vem aí.

E o que é que vem aí? Muito mais fogo, e com muito mais frequência, e a queimar muito mais terra. Nas últimas cinco décadas, a época dos incêndios no Oeste dos Estados Unidos já aumentou em dois meses e meio; dos dez anos com mais actividade de fogos registada, nove são depois de 2000. Globalmente, só desde 1979, a época cresceu cerca de 20%, e os fogos nos Estados Unidos queimam agora o dobro da área registada em 1970. Em 2050, calcula‑se que a destruição causada por incêndios terá duplicado outra vez, e nalgumas regiões dos Estados Unidos a área ardida pode crescer cinco vezes. Por cada grau adicional de aquecimento global, pode quadruplicar. O que isto significa é que, com um aquecimento de três graus Celsius, que são a nossa referência provável para o fim do século, os Estados Unidos podem ter de lidar com 16 vezes mais devastação provocada por incêndios do que hoje, quando num único ano arderam mais de quatro milhões de hectares. Com quatro graus Celsius de aquecimento, a época dos fogos seria quatro vezes pior. O chefe dos bombeiros da Califórnia acredita que o termo já está ultrapassado: “Já nem lhe chamamos época dos incêndios”, afirmou em 2017. “Época não faz qualquer sentido. É o ano todo.”

Mas os fogos não são um flagelo norte‑americano: são uma pandemia global. Na gelada Gronelândia, os incêndios de 2017 terão queimado uma área dez vezes maior do que os de 2014; e em 2018, na Suécia, florestas no Círculo Árctico foram consumidas pelas chamas. Fogos tão a norte podem parecer inócuos, numa visão relativa, uma vez que nessas regiões não vivem assim tantas pessoas. Mas a verdade é que estão a aumentar mais rapidamente do que incêndios a latitudes menores, e isso preocupa muito os cientistas especializados nas questões do clima: a fuligem e as cinzas que produzem podem cair sobre os lençóis de gelo e escurecê‑los, o que faz com que absorvam mais raios de sol e derretam mais depressa. Outro fogo no Árctico deflagrou em 2018 na fronteira entre a Rússia e a Finlândia, e o fumo de incêndios na Sibéria nesse Verão atingiu os Estados Unidos. No mesmo mês, o segundo incêndio mais mortal do século XXI tinha devastado a costa grega, matando 99 pessoas. Num hotel, dezenas de hóspedes tentaram escapar às chamas descendo por uma escada estreita até ao Mar Egeu, mas no caminho foram engolidos por chamas, morrendo literalmente nos braços uns dos outros.

Os efeitos destes incêndios não são lineares, nem uma soma simples. Será mais rigoroso afirmar que eles iniciam um novo conjunto de ciclos biológicos. Os cientistas prevêem que, ao mesmo tempo que a Califórnia vai ficar ainda mais árida por causa de um futuro mais seco, tornando inevitáveis mais e mais fogos devastadores, também vai aumentar a probabilidade de chuvadas nunca antes vistas – podendo chegar‑se a um conjunto de episódios de uma dimensão três vezes maior do que aqueles que produziram a Grande Cheia sentida no estado em 1862. E as avalanchas de lama estão entre as ilustrações mais evidentes do que são os novos horrores que isso anuncia; em Santa Barbara, nesse Janeiro, as casas baixas da cidade foram atingidas pelos detritos que caíam das montanhas, a caminho do oceano, um infinito oceano castanho. Um pai, em pânico, pôs os filhos em cima da bancada de mármore da cozinha, pensando que era o elemento mais sólido da casa, e viu uma enorme rocha a atravessar o quarto onde as crianças tinham estado momentos antes. Uma criança de um jardim‑escola que não sobreviveu foi encontrada a cerca de 3,5 quilómetros da sua casa, numa ravina aberta por carris de caminho de ferro perto da orla marítima; terá sido levada para aí, ao que se julga, por uma vaga contínua de lama. Três quilómetros de lama.

Todos os anos, em todo o mundo, morrem entre 260 mil e 600 mil pessoas por causa do fumo produzido por incêndios, e alguns fogos no Canadá têm sido relacionados com hospitalizações muito distantes – como na Costa Leste dos Estados Unidos. A água potável no Colorado foi considerada imprópria durante anos por causa de um único incêndio ocorrido em 2002. Em 2014, os territórios do Noroeste canadiano foram cobertos por fumo de incêndios, produzindo um aumento de 42% nas idas aos hospitais por causa de problemas respiratórios e daquilo a que um estudo chamou um “profundo” efeito negativo no bem‑estar individual. “Uma das emoções mais fortes que as pessoas sentiram foi o isolamento”, afirmou mais tarde o relator principal. “Há uma sensação de não ser capaz de escapar. Para onde ir? Há fumo por todo o lado.”

Quando as árvores morrem – de causas naturais, num fogo, às mãos do homem –, libertam para a atmosfera o carbono nelas armazenado, às vezes durante séculos. Desta forma, são como carvão. É por isso que o efeito dos incêndios nas emissões está entre os mais temidos ciclos de retorno – o de que as florestas do mundo inteiro, que tradicionalmente têm sido depósitos de carbono, se transformem em fontes de carbono, libertando todo o gás armazenado. O impacto pode ser especialmente dramático quando os fogos devastam florestas que resultam de turfa. Por exemplo, em 1997, na Indonésia, fogos deste tipo libertaram até 2600 milhões de toneladas de dióxido de carbono – 40% do nível anual global de emissões. E mais fogos só significam mais aquecimento que só significa mais fogos. Na Califórnia, um único incêndio pode eliminar completamente os ganhos em emissões feitos ao longo de um ano inteiro por todas as políticas ambientais agressivas do estado. Incêndios a esta escala acontecem agora praticamente todos os anos. Deste modo, troçam da abordagem tecnocrática e meliorista às reduções de emissões. Na Amazónia, que em 2010 sofreu a sua segunda “seca de 100 anos” – isto no período de cinco anos –, foram registados 100 mil fogos em 2017.

Actualmente, as árvores da Amazónia ficam com um quarto de todo o carbono absorvido todos os anos pelas florestas do planeta. Mas, em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente do Brasil, prometendo abrir ao desenvolvimento a floresta tropical – o que é o mesmo que dizer desflorestação. Quanto dano pode uma só pessoa infligir ao planeta? Um grupo de cientistas brasileiros calculou que, entre 2021 e 2030, a desflorestação provocada por Bolsonaro libertaria o equivalente a 13,12 gigatoneladas de carbono. Em 2018, os Estados Unidos emitiram cerca de cinco gigatoneladas. Isto quer dizer que esta única decisão política teria entre duas a três vezes o impacto anual, em carbono, de toda a economia norte‑americana, com todos os seus aviões e automóveis e centrais de energia a carvão. O maior emissor do mundo é, de longe, a China; em 2017, o país foi responsável pela emissão de 9,1 gigatoneladas. Isto significa que a política de Bolsonaro é equivalente a adicionar, nem que seja por apenas um ano, toda uma segunda China ao problema mundial com os combustíveis fósseis – e, por cima disso, adicionar uns segundos Estados Unidos.

Globalmente, a desflorestação representa cerca de 12% das emissões de carbono, e os fogos florestais produzem cerca de 25%. A capacidade dos solos florestais para absorverem metano caiu em 77% em apenas três décadas, e alguns dos que estudam o índice de desflorestação tropical acreditam que isso pode representar 1,5 graus Celsius adicionais no aquecimento global, mesmo que as emissões de combustível fóssil cessem imediatamente.

Historicamente, a taxa de emissões resultante da desflorestação era ainda mais elevada, com a limpeza de matas e o abate de florestas responsáveis por 30% das emissões entre 1861 e 2000; até 1980, a desflorestação teve um papel maior nos recordes de temperaturas máximas do que as emissões directas de gases de estufa. Há também um impacto na saúde pública: cada quilómetro quadrado de desflorestação produz 27 casos adicionais de malária, graças àquilo que é designado por “proliferação do vector” – quando as árvores são eliminadas, os insectos ocupam o seu espaço.

Isto não é simplesmente um fenómeno relacionado com os fogos: cada ameaça ao clima promete desencadear ciclos similarmente brutais. Os incêndios devem ser suficientemente aterrorizadores, mas é o caos que deles emana, mais uma vez em cascata, que revela a verdadeira crueldade das alterações climáticas – pode virar ao contrário e voltar‑se contra nós, com violência, tudo aquilo que pensámos ser estável. As casas tornam‑se armas, as estradas transformam‑se em armadilhas mortais, o ar passa a ser um veneno. E as idílicas paisagens de montanha em redor das quais gerações de empresários e de especuladores reuniram comunidades inteiras tornam‑se, elas próprias, assassinas indiscriminadas – e, a cada sucessivo episódio desestabilizador, existe a probabilidade de voltarem a matar.

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