Marvão é nossa porque a amamos

O leitor Luís Robalo partilha a sua experiência na vila alentejana.

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Marvão está mais perto do céu, para o bem e para o mal.

Para o bem, quando num dia despejado, sereno, ensimesmado de si, estende a vista sem esforço maior até uma enorme longuidão. Agarra os contornos da mais imponente serra continental, maior, que temos: a Estrela. Noutra direcção vai-se quase até ao mar, pelo menos a saber-se que ele está ali, prestes a chegar ao alcance da vista; noutra, os campos lhanos, meio monótonos, a tomarem nos meses de Verão as cores de uma extensa mantilha doirada, como alguém disse do ilustre Branquinho da Fonseca, o homem das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian: “A paisagem era amarela e chata; o poeta deitou-se na paisagem e ficou amarelo e chato”; outra direcção ainda, terras de Espanha, o estrangeiro que temos como nosso vizinho, os melhores que poderíamos ter, irmãos.

Para o mal – que nunca fica esquecido –, em dias de tempo carrancudo, recebe a borrasca antes das terras baixas, águas por vezes diluvianas, primordiais, ventos sibilinos, estrepitando agudos sons nas esquinas, fazendo ricochetes, transformando a intenção original de uma humilde música de câmara, pouco mais do que um par de instrumentos, se assobio é um instrumento, numa grandiosa orquestra sinfónica.

Num caso como no outro, mantém-se impassível, guardiã, já passou por muito, purificada pelos ares mais puros, mais perto das potências celestiais.

Por alguma razão da conjugação de vontades exteriores ao entendimento, a vila recebeu na sua vida branca de casas silenciosas habitantes ilustres (também o Branquinho, da Presença, que já se disse), homens de letras, artistas, sensibilidades afinadas pelas vibrações da arte: a imitação na terra dos homens, da criação das entidades superiores, os deuses.

Procuraram refúgio, fugidos do buliçoso envenenado dos quotidianos da cidade, poluições que só se lavam fugindo para longe.

Marvão é nossa e ainda bem que tem poucos turistas. Habitantes parece que também. Não se vêem nas ruelas estreitas, mal se sente vida a pulsar no interior das casas, escondidas do mundo por finas e belas cortinas de renda, feitas à mão, pausadamente, ao sabor desses ritmos, por mulheres sem rosto que se dê a conhecer.

Os habitantes fecharam-se nas suas casas-mundo e só frequentam o exterior – fantasmagóricos do bem – em noites de lua cheia, quando os estranhos não se passeiam por ali, e eles, os da terra, podem conviver saudavelmente soltando palavras que encadeiam conversas sobre o tudo e o nada: redondamente iguais às conversas de qualquer grupo de homens em qualquer sítio sinalizável na geografia dos locais por estes habitados. Nesses momentos confraternizam, mas não os vemos porque não estamos lá em horas tardias.

Marvão é nossa porque a amamos, só isso. As igrejas, não sendo majestáticas, impõem a humildade das coisas simples e pequenas, o castelo tem uma torre de menagem e muralhas a recortar as agulhas da serra, sendo por isso idêntico a outros nas mesmas condições. Tem uma pequena escola que se calhar não tem alunos, ou poucos, é pena, a criançada dá muita vida a um local.

Comemos, um belo de um cabrito com as suas batatas, a assistir com privilégio à apoteose e ao crepúsculo, ao espreguiçado pousar do sol no horizonte longínquo que o vai acabar por engolir, deixando rasto das últimas luminosidades do dia, que neste, por ser ainda fim de Verão, deixa o céu riscado de laranja e violetas, uma nostalgia empolgante para os olhos e as almas onde eles prestam contas.

Em toda a extensão do que a vista alcançou, gostou-se. Não se conta onde os turistas dormiram por ser o paraíso, e guardar o segredo da localização deste local é um imperativo, não egoísta, da maior sensatez, não se vá estragar o estado ainda puro de algumas coisas, lugares e pessoas que os fazem assim.

Luís Robalo

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