“Brexit”: cuidado com os referendos

As feridas do referendo que levou ao “Brexit” vão deixar a sua marca por muito tempo. No Reino Unido, bem entendido. Mas na Europa também.

O speaker do Parlamento bem grita “Ordem! Ordem!”. Mas o que se passa, há três anos, na mais velha democracia do mundo é a desordem, a confusão e o caos. Depois de duas eleições, três primeiros-ministros, uma guerra constante entre o executivo e o legislativo, sucessivas versões do acordo chumbadas no Parlamento e da suspensão do próprio Parlamento aprovada pela Rainha e declarada ilegal pelo Supremo Tribunal, provavelmente, já ninguém se lembra. Mas tudo começou com um referendo.

David Cameron, que, face à divergência dos eurocépticos do seu próprio partido, enfrentava dificuldades para manter uma maioria parlamentar, resolveu lançar a ideia de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia. Pensava com isso resolver a unidade no seu partido e quiçá ganhar margem negocial em Bruxelas. Era, obviamente, a favor da permanência e jamais lhe passou pela cabeça que não ganhava o referendo. Enganou-se redondamente. Como sempre, os votantes votaram para punir a governação. Cameron perdeu e teve que demitir-se. E não só não resolveu o pequeno problema do partido como criou um grande problema ao país e à União Europeia. Porque toda a gente sabia o que iria acontecer se o Reino Unido permanecesse na União. Mas ninguém fazia a menor ideia do que ia acontecer se viesse a sair. E, apesar de alguns alertas avisados, ninguém mediu bem as consequências nem a sua verdadeira dimensão.

O referendo partiu o país ao meio (51,8% leave vs. 48,2% remain) e deu um mandato ao Reino Unido para sair da União. “‘Brexit’ quer dizer ‘Brexit’", dizia Theresa May. Mas isso não quer dizer nada, porque o mandato não definia o tipo de “Brexit”. E era preciso defini-lo. E se o voto dividiu a opinião pública, dividiu também as instituições e abriu um conflito entre a democracia directa e a democracia representativa, entre a soberania popular e a soberania parlamentar, conflito nunca visto na história política britânica. De um lado, ficou o voto popular em referendo que manda sair, mas sem dizer como. Do outro, um Parlamento representativo, em que muitos dos seus membros são contra o “Brexit” e que tem que institucionalizar e dar sentido à saída e à relação futura entre o Reino Unido e a União Europeia. O Governo, esse, assumiu o compromisso do voto popular e quis liderar o processo para o levar até ao fim. De forma moderada com Theresa May, que fora ela própria uma remainer antes de ser primeira-ministra, e de forma radical com Boris Johnson, que foi sempre um brexiteer

Na desordem, na confusão e no caos em que se tornou a política britânica parece não haver lógica alguma, mas se alguma lógica ainda existe é esta dinâmica conflitual entre a democracia directa e a democracia representativa. Entre o Governo que diz assumir a “vontade do povo” expressa em referendo e que quer cumprir a todo o custo e o Parlamento que não quer permitir ao Governo o controle do processo e quer assegurar o cumprimento dos procedimentos democráticos. E, claro está, o Supremo Tribunal, que é, em última instância, a garantia do Estado de Direito.

O fecho do Parlamento a pedido de Boris Johnson e sancionado pela rainha e a sua reabertura na sequência da declaração de ilegalidade pelo Supremo Tribunal são, a este título, o exemplo mais acabado. Mas a opinião pública também evolui e após três anos de impasse, sem conseguir cumprir a saída e com as consequências à vista, bem mais claras, todas as sondagens mostram uma inversão das atitudes (53% remain vs. 47% leave). Quer isto dizer que o governo britânico está a conduzir o “Brexit” de acordo com uma “vontade popular” que já não existe? É bem possível. E é talvez por isso que na sociedade civil e no Parlamento, muitos e cada vez mais pedem, hoje, um segundo referendo.

Mas do “Brexit” há pelo menos uma lição a tirar sobre referendos, que confirma o que todos já sabíamos: são fundamentais quando estão em causa problemas do foro individual, quando se decidem questões de natureza ética que tocam com os limites da vida e da morte como o aborto ou a eutanásia; mas são perigosos quando se decidem questões de natureza política e institucional que põem em causa os destinos dos regimes políticos ou do próprio Estado. As feridas do referendo vão deixar a sua marca por muito tempo. Na sociedade e na democracia britânica, bem entendido. Mas na Europa também.

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