Bercow não permite votação do acordo do “Brexit” e Johnson avança para a proposta de lei

Presidente da Câmara dos Comuns diz não ser possível apresentar a mesma moção duas vezes numa sessão legislativa. Governo apresenta legislação sobre o acordo de saída da UE, agenda primeira votação para terça-feira e quer cumprir todas as fases do processo legislativo até quinta-feira. Emendas podem baralhar o calendário.

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John Bercow, speaker da Câmara dos Comuns EPA/UK PARLIAMENT / JESSICA TAYLOR

Ainda não é desta que se vai saber se Boris Johnson tem, ou não, os 320 votos necessários para conseguir aprovar o acordo de saída do Reino Unido da União Europeia no Parlamento britânico. Depois de ter abdicado, no sábado, da votação do documento renegociado com Bruxelas, o primeiro-ministro foi impedido de o fazer, esta segunda-feira, após o presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow, ter decretado não ser possível apresentar e debater a mesma proposta duas vezes numa sessão legislativa. Face a estes desenvolvimentos, o Governo vai avançar directamente para a discussão e votação da proposta de lei do “Brexit”, com a primeira votação relevante a ter lugar na terça-feira.

“A moção de hoje é, em substância, a mesma moção apresentada e decidida no sábado pela câmara. As circunstâncias de hoje são, em substância, as mesmas circunstâncias de sábado”, defendeu o speaker da câmara baixa de Westminster. “Assim, a minha decisão é que esta moção não seja debatida hoje, uma vez que seria repetitivo e desordeiro fazê-lo”.

Na sessão extraordinária do passado sábado, Johnson decidiu suspender a votação ao seu acordo, na sequência da aprovação de uma emenda que obriga o Governo a adiar a saída da UE enquanto não for aprovada a legislação necessária para ratificar o acordo final e que forçou o primeiro-ministro a pedir a extensão do prazo do divórcio para lá de 31 de Outubro. A votação não teve lugar porque Downing Street a retirou, mas porque decidiu não a disputar. A avaliação de Bercow é que a moção foi apresentada e discutida e que, por isso mesmo, não poderá voltar a ser colocada na Câmara dos Comuns na actual sessão legislativa.

A decisão do speaker já era, no entanto, esperada, desde que o próprio admitiu, logo no sábado, que poderia haver um caso de violação das convenções constitucionais britânicas. Mais ainda tendo em conta que tomou uma decisão semelhante em Março, quando Theresa May tentava fazer passar o seu acordo no Parlamento.

Para além disso, e apesar de o veredicto ter causado indignação e motivado acusações de parcialidade vindas da bancada do Partido Conservador, mesmo que Bercow autorizasse a votação, o mais provável era que a mesma fosse novamente suspensa pelo próprio executivo, que a meio da manhã desta segunda-feira revelou não ter interesse em votar o acordo se o mesmo fosse alvo de emendas “destrutivas” por parte dos deputados, como aquela que estragou os planos do Governo no fim-de-semana – cenário mais do provável, à luz das promessas veiculadas por diversos elementos da oposição nas últimas horas.

Calendário apertado

A estratégia do Governo passa agora por avançar directamente para a discussão da proposta de lei do “Brexit”, tendo agendado a primeira votação para terça-feira. Se conseguir o apoio dos deputados nessa votação, inicia-se o habitual processo legislativo, de debate e validação do documento. As suas várias etapas – nas comissões, na Câmara dos Comuns e na Câmara dos Lordes – terão de ser cumpridas antes da votação final da lei de implementação do acordo.

O executivo britânico acredita ser possível cumprir os passos necessários na câmara baixa até quinta-feira, dando a possibilidade aos lordes de debaterem e darem o seu veredicto a partir de sexta-feira. Está, por isso, a ser acusado pela oposição de não querer oferecer tempo suficiente aos deputados para “escrutinarem convenientemente” a legislação em causa.

“Quem não apoiar o programa para a moção do Governo estará a votar para não haver ‘Brexit’ a 31 de Outubro”, retorquiu Jacob Rees-Mogg, líder da Câmara dos Comuns e membro do Governo conservador. 

Em termos práticos, ao não votar o acordo do “Brexit”, o Governo salta uma etapa que lhe podia ser conveniente, uma vez que a sua aprovação, enquanto posição de princípio, dar-lhe-ia um amparo político importante para enfrentar as etapas legislativas seguintes. Avançando directamente para a lei, o executivo fica obrigado a convencer os deputados a oferecerem-lhe, num curto espaço de dias, apoio político, jurídico e estratégico, para poder triunfar.

Mas para alcançar a promessa de retirar o país da UE a 31 de Outubro, o Governo tem de completar todas essas fases do processo legislativo até essa data. Um calendário muito apertado para as suas pretensões, principalmente porque se presume que a oposição apresente emendas à legislação, que terão de ser debatidas e votadas, muitas delas contrárias às prioridades definidas por Johnson para o divórcio com os europeus.

Em cima da mesa poderão estar propostas para manter o Reino Unido na união aduaneira da UE – uma hipótese totalmente divergente do disposto no acordo de saída negociado com os 27 –, para forçar o Governo a cumprir o adiamento do “Brexit” se não conseguir aprovar o seu acordo até 31 de Janeiro e até para se colocar o acordo a referendo, a par da permanência do Reino Unido no clube europeu.

Parlamento Europeu vai esperar

Em Estrasburgo, os membros do comité de acompanhamento do “Brexit” do Parlamento Europeu confirmaram a sua intenção de esperar pelo desfecho do processo legislativo em Londres para concluir o processo de ratificação do acordo de saída do Reino Unido fechado na semana passada e já aprovado pelos líderes do Conselho Europeu.

A expectativa era que, na sequência da luz verde dos chefes de Estado e Governo, a conferência de presidentes do PE fizesse uma revisão da ordem dos trabalhos para incluir na agenda a indispensável ratificação do acordo do “Brexit” até ao fim da actual sessão. Mas depois do envio do pedido de extensão do prazo enviado por Johnson aos líderes, no sábado passado, e do adiamento da votação em Westminster, os eurodeputados já não têm necessariamente de cumprir a sua parte esta semana.

Isso não quer dizer que não o venham a fazer antes de 31 de Outubro, que por enquanto continua a ser o “Dia D”​ do “Brexit”. A data para a votação dos eurodeputados ficou condicionada pelos desenvolvimentos em Londres, mas não está dependente do calendário estabelecido para as sessões plenárias de Estrasburgo, explicaram os serviços do Parlamento Europeu.

A conferência de presidentes pode, a qualquer momento, decidir convocar uma sessão extraordinária e mandar reunir o hemiciclo em Bruxelas — o que deverá acontecer imediatamente a seguir à aprovação do acordo de saída pelos deputados britânicos. A pressão continua do lado de lá.

Tribunal adia decisão

No outro grande evento do dia, a mais alta instância judicial da Escócia revelou não ter tomado ainda uma decisão sobre o caso que envolve o primeiro-ministro e o alegado incumprimento da Lei Benn – que obrigou o Governo a formalizar, junto de Bruxelas, e por carta, um pedido de adiamento do “Brexit” –, mas considerou haver motivos mais do que suficientes para continuar a ouvir os advogados das partes nos próximos dias.

Em análise está a actuação de Boris Johnson, no sábado à noite, quando decidiu enviar a referida carta ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, mas sem a assinar e fazendo-a acompanhar por outras duas missivas, essas assinadas, a dar conta de que não pretende negociar qualquer extensão do prazo de saída da UE.

Com Rita Siza (Bruxelas)

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