“A escolha de Handke não é uma vergonha”: júri do Nobel defende-se das críticas

Secretário permanente da Academia Sueca e membros do comité de peritos e dizem não ter encontrado ofensas aos direitos humanos na obra do escritor e dramaturgo austríaco. Uma semana depois, o Nobel da Literatura de 2019 continua polémico.

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Peter Handke fotografado em sua casa no dia em que lhe foi atribuído o Nobel CHRISTIAN HARTMANN/Reuters

Mais de uma semana após a atribuição do Nobel da Literatura a Peter Handke, e após outros tantos dias de críticas pela escolha de um autor cuja posição sobre a Sérvia de Slobodan Milosevic na guerra civil jugoslava é polémica, membros da Academia Sueca e do conselho consultivo do júri vieram a terreiro defender a decisão. O escritor austríaco é seguramente “provocador”, admitem, mas não encontraram, frisam, qualquer escrito seu que desrespeite os direitos humanos ou advogue a violência,

Dois dos membros do grupo de especialistas criado para esta dupla edição do Nobel literário, responsável pela sugestão de uma lista final de autores ao Comité do Nobel da Literatura de 2019, síram nos últimos dias em defesa da escolha. Henrik Petersen, editor, tradutor e crítico literário, classificou Peter Handke como “radicalmente apolítico” e “anti-nacionalista” no que escreve. E considerou mesmo, num texto de opinião publicado no diário sueco Svenska Dagbladet e na revista alemã Der Spiegel, que o suposto apoio dado pelo autor ao regime de Milosevic durante a guerra foi mal interpretado. Handke, diz, “efectuou uma manobra kamikaze, presumivelmente bem ciente dos riscos” – o escritor, cuja mãe é eslovena, acusou os media alemães e austríacos de silenciarem o ponto de vista sérvio durante o conflito.

“A escolha de Handke não é uma vergonha”, postula ainda Petersen, sublinhando que está é apenas a sua posição pessoal. “Estou certo de que daqui a 50 anos… Peter Handke, tal como Beckett, será [visto como] uma das escolhas mais óbvias que a Academia Sueca alguma vez fez.”

Também a crítica literária Rebecka Kärde veio a público, num artigo de opinião no diário sueco Dagens Nyheter, reiterar que o dramaturgo, autor de obras como A Angústia do Guarda-redes antes do Penalti (1970) ou Uma Breve Carta para Um Longo Adeus (1972), “merece totalmente” o Nobel de 2019 — a escritora e activista polaca Olga Tokarczuk foi premiada no mesmo dia com o Nobel de 2018. “O Comité Nobel tem de ler os textos sobre a Jugoslávia a par das outras 70 obras escritas ao longo de 50 anos. O que fizemos”, disse.

“Quando atribuímos o prémio a Handke, defendemos que a tarefa da literatura não é confirmar e reproduzir o que os centros de opinião da sociedade acreditam ser moralmente correcto”, lê-se também no artigo de Kärde. Petersen e Kärde fazem parte do grupo de especialistas criado para esta dupla edição do Nobel literário que foi responsável pela proposta de uma lista final de autores ao Comité do Nobel da Literatura. O formato especial, motivado pela suspensão do prémio em 2018 devido ao escândalo de assédio sexual e de fugas de informação que envolveu o marido de um dos membros da Academia Sueca, foi uma das mudanças no processo de decisão, que incluíram a escolha de um novo secretário permanente da Academia Sueca, Mats Malm. 

Também Mats Malm escreveu entretanto no Dagens Nyheter que Handke “fez de facto comentários provocadores, inapropriados e pouco claros sobre temas políticos, mas não há provas de que tenha homenageado o derramamento de sangue”. Num texto co-assinado com outro membro da Academia Sueca, Eric M Runesson, que é também juiz do Supremo Tribunal Sueco, Malm acrescenta que “a Academia Sueca obviamente não quis recompensar um criminoso de guerra e um negacionista de crimes de guerra e de genocídio” e lamentou que seja essa “a impressão com que se fica ao ler a imprensa”. Ainda no mesmo artigo, promete: “Se algo de novo surgir sobre Handke, avaliá-lo-emos.”

"Eu amava a Jugoslávia"

Estas declarações surgem após uma semana de contestação à decisão da Academia Sueca, que continua a gerar comentários ou textos inflamados de outros escritores, como Salman Rushdie, académicos, como Slavoj Žižek, ou políticos, em particular dos Balcãs. Estes vão recordando que Handke falou no funeral de Milosevic em 2006, louvou outros líderes sérvios condenados por genocídio, como Radovan Karadzic e Ratko Mladic,​ e retratou de forma desigual os diferentes povos da península e da antiga Jugoslávia na sua obra.

Há anos que o próprio Handke se vem defendendo destas acusações, argumentando que não é um negacionista e que só quis ter uma visão imparcial e não culpar unilateralmente os sérvios pelos crimes da guerra civil jugoslava e da Guerra dos Balcãs – uma visão dos acontecimentos que considera emanar de uma conspiração política e mediática. Discursou no funeral de Milosevic porque, disse numa entrevista ao jornal económico norueguês Dagens Næringsliv em 2014, a sua morte significou para ele “o fim da Jugoslávia”, país que “amava”. Sobre o massacre de Srebrenica e os alegados ataques bósnios que o antecederam, proclamou no mesmo jornal: “Foi vingança e não genocídio, como alega o Tribunal de Guerra.” O massacre de Srebrenica, enclave muçulmano então sob a alçada da ONU, teve lugar em Julho de 1995. Estima-se que morreram cerca de oito mil homens e rapazes bósnios-muçulmanos.

Runesson e Malm reiteram que a Academia “nada encontrou nos seus escritos que envolva ataques à sociedade civil ou ao respeito pela igualdade de todos os povos”, questionando “que fontes usaram os críticos [da atribuição do prémio] e por que é que as próprias declarações de Handke são ignoradas”. O autor reagiu há dias às críticas que se foram avolumando. Citado pela estação austríaca ORF, e prometendo nunca mais falar com a imprensa, queixou-se: “Ninguém vem ter comigo e diz que leu o que escrevi, que conhece o que escrevi. São só perguntas sobre como é que o mundo reage, reacções a reacções.”

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