Carta aos psiconautas portugueses: presentes e futuros

Poderá Portugal constituir-se como pioneiro na experimentação de soluções inovadoras, socialmente justas, seguras do ponto de vista da saúde pública e economicamente sustentáveis no campo do consumo regulado de substâncias psicadélicas?

Psiconauta: Pessoa que usa estados alternativos de consciência, intencionalmente induzidos, para investigar a própria mente. O objetivo de tais práticas pode ser responder a questões sobre como a mente funciona, melhorar um estado psicológico, obter respostas a questões existenciais ou espirituais, ou melhorar o desempenho cognitivo do dia a dia. O psiconauta acredita que, quando uma substância que altera a mente é usada com essa intenção, os seus efeitos podem ser alterações na vida e não meramente alucinações (fonte: Wikipedia).

Quem já experimentou substâncias psicadélicas, e sentiu alterações na consciência tão profundas ou reveladoras que a sua vida se alterou a partir de então, tem frequentemente um desejo: todos deviam experimentar o mesmo. Embora, claramente, não seja o caso que todos devam consumir estas substâncias, a questão de como pode a experiência psicadélica ser acessível a mais pessoas - em condições de segurança e conforto, sem se infringir a lei, e sem o estigma associado ao “consumo de droga” - é um tema muito frequente. E é tão mais pertinente quanto mais clara é a evidência de que estas drogas estão numa classe distinta de todas as outras.

Pelo seu perfil de segurança, mas sobretudo pelos seus efeitos na mente humana, o consumo de substâncias como a psilocibina (ex., cogumelos mágicos), o MDMA (ou “ecstasy”), o DMT (presente na ayahuasca) ou a mescalina tem, nos últimos 50 anos, suscitado inúmeros debates sobre como integrar as substâncias psicadélicas na sociedade, potenciando o que de positivo comportam e minimizando os riscos. Atualmente há um evidente renascimento de interesse no tema e o livro de 2018 How to Change Your Mind, do conhecido jornalista de ciência Michael Pollan, foi um importante ponto de viragem. Desde então, vários desenvolvimentos justificam voltar a falar da “nova vida das substâncias psicadélicas”.

Um panorama psicadélico em rápida mudança

Nos EUA, a par do incentivo da Food and Drug Administration (FDA) para acelerar a investigação com MDMA e com psilocibina, sucedem-se as iniciativas para descriminalizar, ou mesmo legalizar, o consumo de cogumelos e plantas com ação psicoativa. Denver, CO e Oakland, CA foram os últimos casos. O conhecido analgésico cetamina, com ação psicadélica e dissociativa, foi também recentemente aprovado como medicamento para a depressão severa (também nos EUA). E o financiamento privado para a investigação está claramente a aumentar, fomentando a realização de mais e melhores estudos e o aparecimento de centros de investigação inteiramente dedicados à “ciência dos psicadélicos”. O maior destes, na Universidade Johns Hopkins, foi recentemente inaugurado através de um financiamento privado de 17 milhões de dólares.

Aumentam, também, quer a cobertura jornalística, quer as iniciativas de disseminação do tema na Internet e redes sociais. Paralelamente, com o aumento de interesse pelo público, cresce a oferta de serviços relacionados com o uso de psicadélicos (cursos online, retiros e workshops experienciais, festivais de música) e multiplicam-se as iniciativas grassroots que pretendem normalizar o consumo e remover o estigma associado aos psicadélicos. Por exemplo, está a ser preparado para fevereiro de 2020 um global coming out day (ver #ThankYouPlantMedicine nas redes sociais), com a participação esperada de várias figuras mediáticas. No mesmo dia, milhares de pessoas em todo o mundo partilharão nas redes sociais as suas experiências com substâncias psicadélicas como a ayahuasca ou o LSD, numa espécie de “LiveAid Psicadélico” em web streaming para todo o mundo.

A esta discussão acrescentou-se, recentemente, um novo tema: a “microdosagem”, que consiste na toma regular de LSD ou psilocibina/cogumelos em doses tão pequenas que não impedem a vida comum (podem até melhorá-la), não causam uma “viagem”, nem são percetíveis por terceiros. É uma experiência psicadélica ainda pouco explorada pela ciência mas que se assemelha à utilização diária que fazemos de alguns medicamentos preventivos (ex., aspirina de toma diária) ou paliativos (p.ex., antidepressivos). Para além da regulação do humor e da ansiedade, a microdosagem também é usada com o objetivo de melhorar capacidades como a concentração ou o pensamento criativo. Isto aproxima-a da ingestão de substâncias como o café e chá, bebidas energéticas, ou os chamados nootropics, suplementos cada vez mais populares destinados a melhorar a função cognitiva em pessoas saudáveis.

A microdosagem é vista por muitos como a forma ideal de se consumir psicadélicos pela primeira vez e como a opção que mais facilmente será adotada por um número alargado de cidadãos, por comparação com a dosagem elevada que é, tendencialmente, mais assustadora e desafiante. A conhecida Baronesa inglesa Amanda Feilding, uma das figuras centrais na história e na ciência dos psicadélicos, é uma conhecida proponente desta modalidade de consumo.

Em suma, uma coisa parece certa: vai aumentar a procura e, consequentemente, a oferta de experiências envolvendo o uso de substâncias psicadélicas (ou “enteogénicas”). A expansão em todo o mundo de retiros com o uso da bebida ayahuasca é o exemplo mais claro desta tendência, e foi um dos muitos temas discutidos pelos mais de 1000 participantes na recente World Ayahuasca Conference. E pelo cantor Sting, que relatou em vídeo a sua própria experiência, com grande detalhe.

Existe, agora, também o precedente oferecido pela canábis, aprovada para fins medicinais em Portugal e em muitos outros países, e que começa a ser legalizada para venda para o cidadão comum. É o caso da Holanda, do Canadá, do Uruguai e também de vários estados norte-americanos, incluindo a Califórnia. Seguirão os psicadélicos o mesmo percurso? O que podemos esperar nos próximos anos do fenómeno conhecido como “o renascimento psicadélico”? Mais importante, o que gostaríamos que acontecesse, tendo em vista o bem comum e não somente interesses particulares? Seremos capazes de garantir condições em que o uso de psicadélicos possa beneficiar pessoas e grupos vulneráveis, expandindo-se para fora do círculo privilegiado que detém, no presente, acesso quase exclusivo a estas ferramentas?

O que fazer?

O fenómeno dos psicadélicos é multifacetado e não se resume ao seu potencial terapêutico (já claramente evidente e elevado), envolvendo também questões filosóficas, éticas e científicas de grande interesse. Por exemplo, a possibilidade de induzir experiências místico-religiosas, ou de manipular e fazer emergir, de uma forma fiável e potente, conteúdos inconscientes numa pessoa. Nas neurociências estuda-se até a possibilidade de substâncias psicadélicas conseguirem estimular o crescimento de células cerebrais, como detetado recentemente com a administração de componentes da ayahuasca em células de ratos adultos.

O consumo de psicadélicos envolve, também, aspetos sócios-culturais com implicações marcantes, incluindo a nossa ligação à Natureza, a reação perante tendências autoritárias, ou a capacidade de aceitação da diferença no (ou de ligação ao) outro - problemas que estão na base dos maiores conflitos globais na atualidade e que os psicadélicos parecem afetar. Trata-se, finalmente, de um fenómeno com raízes culturais e antropológicas antigas, sendo a expressão atual de práticas humanas milenares, oriundas de todas as regiões onde se escreveu a história da civilização humana. Pode afirmar-se que, em praticamente todos os locais onde cresceram plantas e fungos, existem registos do Homem a utilizá-los para autoinduzir estados alternativos de consciência.

Os psicadélicos levantam questões únicas e vão requerer, por isso mesmo, soluções diferentes dos cenários já existentes. Discutir precisa-se, e a discussão poderá ter de envolver a participação de parceiros tão contrastantes como xamãs, cientistas, organizações de saúde pública, médicos, psicólogos, ONGs, sociedades psicadélicas, ex-toxicodependentes, empresários e, também, governantes e a indústria farmacêutica.

Não obstante o muito que há para discutir, existem áreas onde o caminho parece mais claro e onde a ação urge e tem condições para iniciar-se no imediato. Veja-se, a título de exemplo:

- Aumentar a literacia pelo cidadão, para que possa ser mais interveniente nas discussões que se esperam e, também, um consumidor mais informado e exigente perante a crescente oferta de experiências psicadélicas.

- Combater o estigma generalizado, contrariando a associação dos psicadélicos às drogas de abuso, aditivas e prejudiciais à saúde, completamente desfasada do conhecimento científico atual e que afasta, prematuramente, inúmeras pessoas e grupos deste debate.

- Incentivar a investigação científica no nosso país na “ciência dos psicadélicos” (psychedelic science), que se constitui como mais um domínio em que beneficiaríamos de acompanhar tendências mundiais.

- Equilibrar a reduzida representação deste debate na sociedade civil através da promoção da participação, representatividade, organização e capacidade de influência de organizações (sociedades, associações, ONG) que detêm acesso privilegiado ao conhecimento recente sobre estas ferramentas.

- Criar, adaptar e promover a adoção de guias de boas práticas no uso terapêutico e psiconáutico dos psicadélicos, que acompanhe de forma urgente a proliferação de práticas de facilitação privada e o crescimento do número de utilizadores.

-Desenvolver a (in)formação para profissionais (ex., psicólogos e psiquiatras) sobre os mecanismos psicofisiológicos envolvidos, o potencial terapêutico, as interações com os psicofármacos, o aconselhamento e acompanhamento de utentes/clientes que consomem ou desejam consumir psicadélicos, etc.

-Promover o acompanhamento especializado, em situação de crise ou no seguimento de uma experiência, a pessoas que apresentam consequências e sintomas decorrentes do uso de psicadélicos ou que apresentam necessidade de integrar, com a sua biografia, a informação trazida por essa experiência.

Pode Portugal ser um exemplo?

Portugal tem vindo a apresentar-se, no panorama internacional e há já duas décadas, como um exemplo de regulação em matéria de uso de drogas, fruto do reconhecido mérito da política de descriminalização do uso de todas as substâncias psicoativas ilícitas. A nossa moldura legal tem vindo a ser sucessivamente reconhecida pelas suas vantagens, que se destacam a vários níveis: no controlo epidemiológico do consumo; na promoção da saúde das pessoas que usam drogas; na redução dos riscos associados ao consumo das mesmas; na promoção do acesso ao tratamento por parte dos utilizadores problemáticos; pela gestão mais eficiente dos problemas legais decorrentes da relação com as drogas; e pelo elevado custo-benefício económico da lei sobretudo nos campos da saúde e da justiça.

Estas fontes de evidência transportaram o exemplo português para a vanguarda da discussão na comunidade de pessoas que atuam diretamente no terreno nos mais variados níveis de intervenção relacionados com o uso de substâncias. Mas este facto, que sem dúvida nos dignifica mundialmente, também nos tem encerrado no imobilismo e na ausência de discussão relativamente a outros temas mais recentes. No campo da ciência dos psicadélicos, esta realidade é cada vez mais difícil de justificar.

A este nível, tem sido comum entre a comunidade de utilizadores mais experientes, a ideia de que é urgente mudar leis, incluindo promover a legalização e o acesso generalizado aos psicadélicos. De facto, uma comparação simples com o quociente risco-benefício de drogas legais como o álcool ou o tabaco (consensualmente muito elevado) sugeriria que a legalização dos psicadélicos já vai muito atrasada. Deverá ser este o próximo passo? Deve a vivência da nossa própria consciência (desde que não represente um perigo para terceiros) constituir-se como um direito inalienável? Existem oportunidades e vantagens, económicas e outras, num cenário de maior liberalização de venda e regulação do consumo? Qual seria o impacto expectável de uma medicalização ou até de uma “mainstreamização” dos psicadélicos?

As melhores respostas para estas questões surgirão com o tempo e com o necessário aumento dos espaços adequados de discussão. Mas um exemplo que deve ser mantido sob análise é a experiência da Holanda onde as trufas psicadélicas, que contêm psilocibina e provocam “viagens” psicadélicas em tudo comparáveis aos cogumelos mágicos, são produtos de venda livre há décadas. Podem ser usados em doses “normais” ou em microdosagem, e não parece haver registos de efeitos nefastos. Para além do impulso no turismo proveniente da sua atitude “flexível” face às drogas, cresce atualmente na Holanda o turismo psicadélico, em centros e retiros que enquadram formalmente estas experiências. Atrai um investimento privado considerável, e centenas, senão já milhares, de participantes de todo o mundo. O futuro dirá como evoluirá esta tendência, mas ela parece, para já, benigna se não mesmo francamente positiva para aquele país.

Terá Portugal condições para crescer nesta direção? Poderá Portugal constituir-se como pioneiro na experimentação de soluções inovadoras, socialmente justas, seguras do ponto de vista da saúde pública e economicamente sustentáveis no campo do consumo regulado de substâncias psicadélicas?

Esse cenário carece de uma visão mais clara para os psicadélicos na sociedade portuguesa, visão essa que poderá ter de nascer exatamente da comunidade que mais tem aprofundado conhecimento sobre os psicadélicos - cientistas, ativistas, terapeutas e muitos dos utilizadores hoje envolvidos com estas substâncias - tal como foi recentemente proposto à margem da excelente palestra sobre os caminhos pós-renascimento psicadélico, na conferência Breaking Convention. Dos governantes, precisaremos então de boa dose de coragem. Exatamente como quando, em 2001, se alterou a lei para deixar de se considerar crime a aquisição e a posse de droga para consumo próprio. O desafio de normalizar os psicadélicos na sociedade (global), a partir de Portugal, exigirá um passo de dimensão similar.

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