Joker e o poder dos loucos

Se os “loucos” se revoltarem contra uma dada conformação social, de minoria passam a maioria e, na verdade, todas as revoltas ao longo da História começaram por ser obra de um punhado de “loucos” que ousaram sonhar com um futuro diferente. Para o bem e para o mal.

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Jean-Baptiste  Lully, Les Folies d'Espagne, Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos. Música, literatura e pintura, respectivamente. Apenas três exemplos do quanto o ser humano sempre se sentiu atraído pela loucura, melhor dito, por aquilo que, em cada época, se convencionou designar por incapacidade de comportamento em função do que é estatisticamente normal. Vem isto a propósito de uma feliz coincidência: mais um dia mundial da saúde mental (10 de Outubro) e o filme Joker.

É dado indesmentível, em Portugal e no mundo, que as “doenças da alma”, porque amiúde invisíveis e tantas vezes encaradas como culpa dos próprios, são o parente paupérrimo dos parentes pobres do SNS. Sucessivas equipas de trabalho, legislação interna, convenções internacionais, e quem padece de um distúrbio mental continua a enfrentar uma enorme dificuldade no acesso aos cuidados de saúde e uma notória discriminação.

O SNS tem muito poucos psicólogos a trabalhar consigo, as respostas da psiquiatria dos hospitais são tardias e quantas vezes no limite de um ataque de pânico, de um episódio grave de mania, psicose, que termina nas urgências e em internamento. Segue-se o calvário das camas disponíveis, da falta de resposta dos hospitais de dia, do tratamento ambulatório. Desde uma fria visão económica, a política é profundamente irracional, pois está estudado como a depressão e a ansiedade, p. ex., são responsáveis por boa parte do absentismo, da incapacidade definitiva para o trabalho, pela aposentação antes do tempo, o surgimento de doenças psicossomáticas, para além de adições, da desestruturação que pode terminar na rua, sem família, amigos ou qualquer outra figura de vinculação.

Este é o esquecimento de governos sucessivos. Se se tem avançado para a inserção comunitária e não para o aumento do estigma por via da segregação, a verdade é que todos nós lidamos mal com a doença mental. A física, mesmo mortal, vê-se no corpo ou em exames médicos. A mental é, amiúde, invisível, só estando perante os nossos olhos as suas consequências. E é tão fácil julgar a “debilidade de carácter dos outros”, a “falta de coragem”, a “fraqueza”… “Deixa-te disso!!, “todos temos dias maus”, “tens de ter força”, “não sejas mariquinhas”, são algumas das expressões que mais ouvimos e que em nada ajudam o doente mental. Ao invés, fazem-no cair ainda mais no fosso da negridão tantas vezes absoluta.

É essencial mudar este estado de coisas. Familiarmente, já vivi, como tantos de nós, a doença de perto e compreendi que ela é demasiado complexa para a deixarmos só entregue a profissionais. Eles são fulcrais e enquanto fizermos por esquecer a doença mental, visto esta incomodar e nos lembrar que qualquer um por ela pode ser afectado, ao menos na forma da imensa variedade de depressões e demências, ou seja, que todos podemos ser “atacados”, manteremos a política da avestruz.

Para além de mais verbas para a investigação científica, para programas de apoio a ONG’s, de integração na comunidade, de hospitais de dia e tratamento ambulatório, é nodal que a sensibilização passe pelas escolas, pelos locais de trabalho e pelos poderes públicos. Em muitos casos, uma depressão, uma bipolaridade, uma esquizofrenia, se medicadas e acompanhadas por profissionais de saúde, reflectem-se em cidadãos de corpo inteiro, no sentido de connosco conviverem sem qualquer diferença face aos demais. Muitos são nossos amigos, companheiros de trabalho, governantes, bastando lembrar que vários dos génios da História padeciam de algum tipo de enfermidade mental.

“De médico e de louco todos temos um pouco” ou “a genialidade roça a loucura”, são adágios consolidados, como consolidada devia ser a total recusa e condenação societária de ainda se manterem pacientes mentais fechados como animais, quase parecendo termos retrocedido à Idade Média, em que os loucos eram bobos da corte e considerados como obra demoníaca. Tantos foram queimados pela Inquisição, quando de loucos nada tinham, mas apenas um espírito livre que não compactuava com os empalados horizontes da época.

O filme Joker tem sido analisado de várias perspectivas e essa é a sua beleza. Há quem se foque na piedade de uma história de doença mental e de abusos intoleráveis na infância e adolescência, como que desculpando crimes, e há quem se revolte contra esta visão. O Direito Penal trata da inimputabilidade, ou seja, da incapacidade de culpa pela prática de factos ilícitos-típicos em função de anomalia psíquica, para além da imputabilidade diminuída, reagindo com medidas de segurança e não com penas a tais factos. O objectivo central é o tratamento destes agentes, para além da sua segregação por um tempo determinado, e também é seguro que o trabalho que se vai fazendo nas prisões com estes reclusos é insuficiente, fruto de um desinvestimento crónico. E isto pela linear razão de estas pessoas não renderem votos.

Para mim, o que mais me impressionou em Joker e me fez ligá-lo às anteriores considerações foi perceber como o equilíbrio de uma sociedade, em termos de ordem e tranquilidade públicas, é tão periclitante. Se os “loucos” se revoltarem contra uma dada conformação social, de minoria passam a maioria e, na verdade, todas as revoltas ao longo da História começaram por ser obra de um punhado de “loucos” que ousaram sonhar com um futuro diferente. Para o bem e para  o mal. A loucura que é doença, porque representa sofrimento para o próprio ou para terceiros, deve ser encarada como a prioridade que nunca foi. Aquela que nos impele ao desconhecido ou a mudar um status quo que não traz felicidade ao Povo deve ser incentivada, pois de gente cinzenta e seguidista está a barca cheia...

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