Defesa de Berardo avalia colecção de arte em 1,3 mil milhões de euros

Na contestação ao arresto das obras de arte de José Berardo, a defesa do empresário estima que a colecção depositada no Centro Cultural de Belém possa hoje valer mais de mil milhões de euros e argumenta que o actual comodato acordado com o Governo torna “fantasioso” o risco de venda.

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Rui Gaudêncio

A Colecção Berardo, depositada no Centro Cultural de Belém (CCB), valerá cerca de 1,3 mil milhões de euros, sustenta a Associação Colecção Berardo (ACB) na sua contestação ao arresto judicial daquelas e de outras obras de arte de que é proprietária.

O documento apresentado pela defesa, que terá dado entrada no tribunal já no passado dia 19 de Setembro, segundo disse ao PÚBLICO uma fonte ligada ao processo, sustenta que o próprio sucesso da operação de arresto afasta o perigo de dissipação das obras invocado na providência cautelar interposta pela CGD, o BCP e o Novo Banco, que em Abril tinham movido uma acção executiva conjunta contra o empresário José Berardo e empresas por ele controladas para cobrar dívidas que ascenderão, no total, a 962 milhões de euros. 

Segundo o Jornal Económico, que teve acesso ao documento de contestação, a ACB, cujo presidente vitalício é o próprio José Berardo, pede o levantamento do arresto, argumentando que o “presente ambiente político e mediático” tornaria “totalmente fantasioso” um cenário de venda e lembrando que as obras estão no CCB ao abrigo de um protocolo de comodato que impossibilita a sua dissipação.

De acordo com os cálculos da ACB, só a Colecção Berardo valeria hoje mais do que a soma das dívidas reclamadas pelos três bancos. Com base no que já foi noticiado, para chegar à estimativa agora avançada de 1,3 mil milhões de euros, a defesa da ACB ter-se-á socorrido de uma entrevista do historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida ao jornal Correio da Manhã, na qual este aventa que a colecção poderá valer hoje “talvez o dobro”.

Se se tomar como referência a avaliação feita pela leiloeira Christie's em 2006, que estimou a colecção em 316,3 milhões de euros, o dobro desse valor ficaria muito distante dos 1,3 mil milhões agora sugeridos, mas o mesmo especialista afirmou recentemente ao PÚBLICO que a colecção Berardo, “a ser vendida criteriosamente por uma comissão independente e que incluísse o próprio comendador, poderia valer para cima de mil milhões de euros”. 

E os cálculos apresentados nesta contestação ao arresto privilegiam a avaliação feita em 2009 por um galerista de Miami, Gary Nader, em detrimento da estimativa da Christie's. Há dez anos, Nader propôs 571 milhões. E a defesa da ACB — assinada, segundo a Lusa, pelo advogado Carlos Costa Caldeira –​, observa que “é conhecida a enorme valorização da arte moderna na última década, havendo fontes que contabilizam a valorização média anual da arte moderna, desde 2000, em mais de 7,6%”. Ainda segundo a Lusa, a fonte em causa será um artigo do site especializado artprice.com, no qual se sustenta que ao longo dos últimos anos o mercado da arte contemporânea subiu até 7,6% por ano.

As contas da ACB partem desta base para propor três cenários alternativos, admitindo, respectivamente, valorizações anuais de 6%, 7% e 7,6%. No primeiro caso, a colecção valeria hoje 1084 milhões, no segundo chegaria a 1202 milhões, e no terceiro, que o próprio artigo da artprice.com adianta como intervalo máximo, atingiria 1278 milhões. 

A defesa de Berardo procura ainda desmontar um argumento usado pelos bancos para sustentar o perigo dissipação das obras: o facto de o empresário, em 2018, ter tentado levar a leilão, na Christie's, 16 obras da Colecção Berardo, pretensão travada pela Direcção-Geral do Património Cultural, numa decisão que a ACB procurou mesmo, sem êxito, ver anulada em tribunal. Na sentença que determinou o arresto afirma-se que “segundo a avaliação possível” naquele momento, estas 16 obras valeriam 175 milhões de euros. O advogado da ACB considera agora que a “possibilidade de alienação” destas peças não poria em causa a permanência do resto da Colecção e não seria, por isso, relevante "para fundamentar o alegado justo receio de dissipação”. 

Das 862 obras que o Estado abdicou de comprar em 2016, Berardo “apenas pretendeu alienar 16, e em venda em leilão competitivo e muito publicitado, a realizar em Londres”, nota o documento, chamando a atenção para o facto de estas peças, às quais a Christie's atribuíra em 2006 um valor de 61,3 milhões de euros, serem agora avaliadas pela mesma leiloeira em 221,5 milhões de euros, uma valorização de 261%. 

O documento de contestação do arresto sugere ainda haver contradição no facto de os bancos se considerarem prejudicados pela eventual venda destas 16 peças quando não contestaram a possibilidade que o Estado teve até 2016 de comprar a Colecção Berardo por 316,3 milhões de euros.

O mesmo texto, que terá, segundo a Lusa, 36 páginas, tenta ainda contrariar a ideia de que estas 16 obras, além de terem sido aparentemente escolhidas a dedo pelo seu potencial valor financeiro, constituem ainda, do ponto de vista artístico, peças centrais no conjunto da colecção. “E nem se venha dizer que essas 16 obras constituem as obras seminais da colecção, pois a maior parte dessas obras não estiveram expostas no núcleo permanente do Museu Colecção Berardo por um grande período de tempo”, diz o documento, acrescentando que essa ausência não levou ninguém a dizer que este deixara, por isso, de ser “um dos maiores museus de Arte Moderna e Contemporânea”. 

A contestação aborda também aquele que parece ser um dos principais imbróglios jurídicos deste processo, que passa por saber se os títulos da Associação Colecção Berardo que o empresário ofereceu como garantia das dívidas que contraiu junto da Banca permitirão ou não aos credores apropriar-se das obras de arte de que esta associação é formalmente proprietária. Se a sentença de arresto parece sugerir que o tribunal considerou essa interpretação plausível, a defesa subscrita por Carlos Costa Caldeira procura rebater a argumentação dos bancos.

Salientando que a ACB não integra o conjunto de pessoas ou instituições envolvidas no acordo-quadro que José Berardo negociou com a Banca em 2012, identificadas nesse mesmo acordo como “Entidades Berardo”, o advogado defende que a única obrigação que assiste à ACB no âmbito desse protocolo é a de “prestar toda a colaboração que seja necessária ou conveniente no âmbito da avaliação da Colecção Berardo”.

Por isso, o argumento de que teria sido “factor decisivo para o acordo dos Bancos quanto à concretização da reestruturação dos financiamentos” o envolvimento de “todas” as ditas Entidades Berardo é uma afirmação que não diz respeito à ACB, alega o advogado.

O documento sustenta ainda que a ACB “não contraiu qualquer empréstimo junto das três instituições de crédito que se arrogam titulares de créditos sobre a Fundação [José Berardo]” nem “prestou qualquer garantia” a dívidas daquela Fundação, prestação essa que, acrescenta “seria sempre nula, por contrária aos fins da associação”.

O texto debruça-se ainda sobre as alterações aos estatutos da ACB e à emissão de novos títulos de participação, que vieram diluir a posição dos bancos. “Os três bancos sempre souberam que a associação era livre, mesmo entre 2008 e 2016, de realizar emissão de títulos”, diz a defesa, defendendo que se esta efectivamente dilui “a posição absoluta dos associados que existiam em 2008”, já “em nada prejudica a validade do penhor dos títulos patrimoniais de que os requerentes beneficiam”.

A ACB acusa ainda os bancos de quererem ser associados com “o objectivo não declarado” de “destruir” a associação, e de se continuarem a “arrogar direitos de voto que não têm”.

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