Francisco joga “o futuro do seu pontificado” no sínodo sobre a Amazónia

No encontro que Francisco promove até dia 27 com os bispos da Amazónia a corrupção surge como o principal alvo a abater. Mas no sínodo discutir-se-á também a possibilidade de homens casados serem ordenados e de as mulheres ascenderem na hierarquia da Igreja

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O novo encontro do Papa com os bispos decorrerá até ao dia 27 de Outubro Reuters/Tony Gentile

Combater a corrupção, mesmo a que se ampara “em legislação traiçoeira do bem comum”, é um dos enunciados da agenda de trabalhos preparada para o sínodo que a Igreja Católica dedica à Amazónia, que reunirá em Roma, entre este domingo e o próximo dia 27, bispos dos nove países abrangidos por aquela região. No respectivo documento preparatório, a palavra “corrupção” surge 19 vezes e na mira da Igreja estão a indústria extractivista, que goza da “conivência dos governos locais”. Mas, além do seu papel de porta-voz contra a destruição de uma área que congrega 40% da área de florestas tropicais do globo, o que o Papa Francisco está a lançar a jogo neste encontro é o seu próprio pontificado.

A abertura à possibilidade de virem a ser ordenados como padres “pessoas idosas, preferencialmente indígenas, respeitadas e conhecidas na comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável”, para colmatar a escassez de padres naquela região do globo, a par da referência ao desafio de “identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher”, inscrevem-se na tradição reformista de Francisco. A mesma que lhe tem valido acusações de heresia e de apostasia por parte do todo-poderoso sector conservador da Igreja Católica. Que vem assumindo, de forma cada mais despudorada, a vontade de ver o argentino despido das vestes papais.

“Estamos num momento determinante para o pontificado deste Papa. O que eu espero é que este sínodo seja o pontapé de saída para acabar com o tabu da ordenação de homens casados, não só na Amazónia mas em toda a parte”, começa por enunciar o teólogo português Frei Bento Domingues, que já antes teve oportunidade de considerar que a admissão desta possibilidade especificamente para a amazónia foi uma “astúcia” do Papa para fintar os seus detractores, e para quem, mais importante do que as decisões que vierem (ou não) a ser tomadas na sequência desta discussão sinodal, o passo fundamental está dado: “Este sínodo não será o último acontecimento da história da Igreja, o importante é que o debate foi ‘descongelado’ e a porta foi aberta”.

Acabou-se o tabu, portanto, também em relação à possibilidade de as mulheres ocuparem novos ministérios na hierarquia da Igreja. “Tendo a mulher já garantido o acesso a todas as lideranças humanas, quer no trabalho quer na ordem social e política, como é que se pode continuar a supor que é vontade divina que as mulheres não possam aceder aos ministérios ordenados na Igreja?”, espanta-se o monge.

O padre e professor de filosofia Anselmo Borges, uma das vozes mais acerrimamente defensoras da restauração do diaconado feminino e da ordenação das mulheres – questões sobre as quais a generalidade dos bispos portugueses se mantém silenciosa, também considera que os dados estão lançados. “É uma questão de direitos humanos. E Deus não pode ir contra os direitos humanos”, arruma, para sustentar que o que está em causa com a ordenação de homens casados na Amazónia é a garantia de que a Igreja se faz presente naquela região. “A eucaristia é central na Igreja, sem ela não há Igreja. E, se para terem direito à eucaristia, aquelas comunidades pedem a ordenação de homens casados – maduros e experimentados na vida e na fé -, onde é que está o problema?”.

Panteísta e herético

Mas os argumentos em que cardeais como o norte-americano Raymond Burke, o alemão Gerhard Müller ou o espanhol Rouco Varela, entre outros, sustentam a sua oposição a este Papa ancoram-se numa tradição de milénios que o outsider dos poderes instituídos do Vaticano vem esboroando. E, apesar de fortemente suscitados pelas mudanças na moral sexual da Igreja, a par de pelo persistente questionamento dos privilégios clericais, as críticas ramificam-se por outros campos da actuação de Francisco. Os princípios defendidos no documento de trabalho deste sínodo levaram os seus detractores a insinuarem que o Papa está a validar convicções panteístas. Porquê? Porque no documento, entre referências várias à necessidade de a Igreja Católica abandonar a sua atitude corporativista, se defende o respeito pelas práticas milenares indígenas. “Hoje em dia, a igreja tem a oportunidade histórica de se diferenciar claramente das novas potências colonizadoras”, enuncia o documento, enfatizando a importância das expressões locais da religiosidade popular e sublinhando a necessidade de a Igreja se posicionar naquelas comunidades aborígenes com uma postura de diálogo e de respeito pelos seus conhecimentos em campos como a agricultura e a medicina.

“Há um estilo de vida na Amazónia que este sínodo quer acentuar, de proximidade com a Natureza, e isso deve traduzir-se na vida da Igreja”, interpreta Anselmo Borges, para quem a defesa do respeito pelos rituais e pelas cerimónias e crenças indígenas se inscreve na aproximação de Francisco às periferias geográficas. “A Igreja é uma instituição global, mas, para este Papa, não deve ser centralizada nem romanizada. Se lá o pão e o vinho não são elementos nucleares do estilo de vida, como são na cultura mediterrânica, então a celebração da eucaristia deve adaptar-se”, concretiza.

Sem receio aparente de incomodar os poderes instalados, e de dedo apontado por exemplo ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, o documento elenca a urgência do combate à corrupção: tanto à que existe fora da lei como à que se ampara “em legislação traiçoeira do bem comum”. Há referências às grandes companhias que “perseguem o lucro custe o que custar” e à conivência dos governos que “nem sempre cumprem o seu dever de preservar o meio ambiente e os direitos das suas populações”. “A corrupção afecta as autoridades políticas, judiciais, legislativas, sociais, eclesiais e religiosas que recebem benefícios para permitir a actividade destas companhias”, concretiza a Igreja, considerando inadmissível que as populações locais continuem a ser vítimas “do narcotráfico, de mega- projectos de infra-estrutura, como as hidroeléctricas e as estradas internacionais, e de actividades ilegais vinculadas ao modelo de desenvolvimento extractivista”. Porque o que está em causa é o “ponto de não-retorno” a que a desflorestação, a contaminação e o deslocamento forçado da população estão a conduzir a Amazónia, a região cujo rio “lança sozinho todos os anos no oceano Atlântico 15% do total de água doce do planeta”.

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