Morreu a soprano Jessye Norman, aquela cuja voz era “toda uma mansão de som”

Considerada uma das vozes mais importantes da ópera na segunda metade do século XX, a cantora morreu aos 74 anos devido a um choque séptico, na sequência de complicações causadas por uma lesão medular sofrida em 2015.

Gary Moore
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Jessye Norman numa actuação em 2010 REUTERS
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A cantora de ópera nas celebrações dos 50 anos do discurso de tomada de posse do ex-Presidente dos EUA John F. Kennedy, em 2011 REUTERS
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Jessey Norman canta He's got the whole world in his hands durante uma actuação em Washington, em 2013 REUTERS
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Jessye Norman numa actuação em 2010 REUTERS
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Barack Obama cumprimenta Jessye Norman depois de uma actuação em 2009 REUTERS
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A cantora de ópera em 2010 REUTERS
,Cantor de ópera
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Era um dom, aquilo que a fez ganhar a dimensão artística que atingiu. Esse dom que levou a que, em 1992, o New York Times escrevesse ser impossível classificar a sua voz em termos de alcance e género, conceitos “demasiado limitados, criados para outros, para talentos mais limitados”. Mas não era só o dom, naturalmente. O talento de Jessye Norman, uma das sopranos mais celebradas da segunda metade do século XX, que morreu esta segunda-feira, aos 74 anos, no Hospital Mount Sinai St Luke’s, em Nova Iorque, vítima de um choque séptico e falência múltipla dos órgãos, fez-se também de uma forte personalidade e da vontade de arriscar no repertório, assim como do contexto em que cresceu, numa família dada à música e às artes no Sul segregado dos Estados Unidos.

Nascida a 15 de Setembro de 1945 em Augusta, no estado americano da Georgia, filha de um vendedor de seguros e cantor amador e de uma professora que era também pianista amadora, Jessye Norman começou por cantar gospel na igreja local, aos quatro anos. Aos nove, recebeu uma prenda de aniversário que se revelou fundamental no seu percurso: foi num pequeno rádio que descobriu as emissões semanais de ópera da Metropolitan de Nova Iorque. “Lembro-me de ter pensado que as histórias em ópera não eram muito diferentes das outras: um rapaz conhece uma rapariga, apaixonam-se, por alguma razão não podem ficar juntos e, na maior parte das vezes, não são felizes para sempre”, escreveu na sua autobiografia, Stand Up Straight and Sing!, publicada em 2014. “Para mim, a ópera eram versões adultas de histórias que já me eram familiares.”

O contacto posterior com o percurso pioneiro de cantoras afro-americanas como Marian Anderson (1897-1993), Dorothy Maynor (1910-1996) e Leontyne Price (1927) mostrou-se igualmente determinante: “Tornaram possível que eu dissesse ‘vou cantar ópera francesa’ ou ‘vou cantar ópera alemã’, em vez de me ser ordenado ‘vais cantar Porgy and Bess [a histórica ópera de Gershwin, centrada na experiência afro-americana]”.

Em 1969 estava na Alemanha, a estrear-se no palco operático na Deutsche Oper de Berlim, interpretando Elisabeth no Tannhäuser de Wagner. A crítica, impressionada, classificou-a como “a maior voz desde a soprano alemã Lotte Lehmann”. Jessye Norman passara os anos de formação na Howard University, em Washington, antes dos estudos na Universidade do Michigan e no Peabody Institute, em Baltimore, e de, concluídos estes, partir para a Europa, onde não tardou a ser notada em palcos nobres como o Scala de Milão ou a Royal Opera House de Londres. À Metropolitan, cujos concertos acompanhava na infância através da rádio, chegou em 1983, já regressada aos Estados Unidos, para ser a Cassandra em Os Troianos, de Berlioz.

Nove anos depois, Edward Rothstein escrevia no New York Times que a portentosa presença e a capacidade vocal de Jessye Norman equivaliam a toda “uma mansão do som”: “É capaz de se abrir para nos mostrar as vistas mais inesperadas. Tanto nos pode levar para um quarto iluminado pelo sol como fazer-nos atravessar exíguos corredores e halls cavernosos. Ela é a mestre neste território e a sua presença física adequa-se na perfeição à sua dimensão vocal.” Em entrevista no início deste ano, a cantora reconhecia que a amplitude pouco comum da sua voz era um dom. Lembrava, porém, que “todos nascemos com uma voz": “O que podemos conseguir com o treino é mudar-lhe a tonalidade. E se formos muito inteligentes, podemos aprender a apoiar as nossas vozes.” Nesse sentido, Jessye Norman era, reconhecidamente, muito inteligente.

Intérprete de Wagner, Poulenc, Purcell, Verdi, Bartók ou Strauss (é muito recordada a sua prima donna de Ariadne auf Naxos), destacou-se também no Lied (Vier Lätzte Lieder/Four Last Songs, de Richard Strauss, acompanhada por Kurt Masur e pela Leipzig Gewandhaus Orchestra, é uma das suas gravações mais celebradas), sem esquecer os espirituais gospel que a acompanhavam desde a infância e a que dedicou gravações em estúdio e espectáculos de palco (como aquele que, em 1982, a juntou ao encenador Bob Wilson em Great Day in the Morning). Paralelamente, colaborou com o coreógrafo Bill T. Jones ou com o compositor John Cage — “gaiolas são para os pássaros”, costumava dizer quando a inquiriam sobre a diversidade de expressões artísticas que ia abraçando. O seu estatuto e a sua popularidade levaram-na a actuar na tomada de posse de dois presidentes americanos (Ronald Reagan e Bill Clinton), a cantar para a rainha Isabel II no 60.º aniversário da monarca britânica ou a interpretar A Marselhesa nas cerimónias de comemoração dos 200 anos da Revolução Francesa, em 1989.

Em Fevereiro deste ano, em entrevista à rádio canadiana CBC, recordou uma infância que classificou como “mágica”. Contextualizou: “Apesar de ter crescido no Sul de Jim Crow, com segregacionismo omnipresente, poderia ter caído num contexto em que isso se manifestasse em mim de forma diferente.” Referia-se à comunidade solidária em que cresceu e, principalmente, aos pais, “incrivelmente empenhados na educação e em assegurar que ela envolveria tanto as mentes como os corpos dos seus cinco filhos”.

Além da força da sua obra, deixa como legado a Jessye Norman School of the Arts, uma instituição fundada em 2003 na sua cidade natal, Augusta, que oferece gratuitamente estudos de artes performativas a estudantes com dificuldade económicas.

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