A “arqueologia instrumental” de Pedro Ferreira, artesão da música

Há mais de uma década que este artesão português constrói instrumentos para músicos dos quatro cantos do mundo, da Espanha ao Japão.

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Os dias passam-se como numa espécie de Viagem à Volta do Meu Quarto, o livro de Xavier de Maistre em que todas as incursões acontecem naquele espaço fechado, fazendo crer que grandes viagens não implicam grandes deslocações. Aqui, no entanto, não há o tom satírico e, em vez da mesa e materiais de escrita, Pedro Ferreira alonga o tempo em pé, à volta de três eixos: a madeira, as ferramentas e o som. É com eles que constrói instrumentos de música, sobretudo antigos e muitas vezes que apenas existem nos livros, a pedido de quem os quer resgatar de um formato inanimado, fazendo-os tocar novamente.

Nesta cave indistinta de São Domingos de Benfica, “Itálias” em clavicórdio e harpas irlandesas voam para o presente, sob o ruído de serras e lixas, e de troncos cavados em bruto. Uma tarefa de ressuscitação. Uma vez terminadas, já depois do gesto decorativo – muito de pincel e com recurso a pigmentos utilizados noutras épocas – de Rita Roberto, a companheira de Pedro, as encomendas seguem para países como Espanha, Noruega ou o Japão. “Às vezes trocámos mensagens para saber como vai o instrumento. Pode parecer estranho, mas eles vão mudando e só passado um tempo é que atingem um determinado som”, explica o construtor.

Formado em Belas Artes, em Lisboa, e com aulas de guitarra e de acordeão no percurso, Pedro Ferreira sempre teve “tendência” para aprender sozinho. “Demora-se mais tempo mas descobrem-se outras coisas. Chega-se a outro entendimento do som”, diz o artesão, que trabalha há mais de dez anos nesta área, em torno daquilo que considera ser uma “arqueologia instrumental”, já que cada processo se inicia numa longa investigação, através de documentos, referências, fotografias e radiografias maioritariamente recolhidos de museus de música europeus.

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“Estas harpas são das coisas mais incríveis que já fiz”, exemplifica. “É um símbolo nacional da Irlanda, que entretanto caiu em desuso e agora eles querem tentar recuperar. Em Fevereiro, fomos ao museu estudá-la e, com a ajuda de um scanner a laser, ficámos com uma foto em três dimensões do original. Depois, foram meses de levantamento de informação.” Só a seguir vem o trabalho material, para responder a duas encomendas: uma da Irlanda do Norte e outra do Brasil. É aí que os braços se esticam até às madeiras empilhadas do lado esquerdo do atelier, todas de origem europeia, muitas vezes portuguesa, numa lógica de proximidade com a matéria-prima, porque “não há necessidade de recorrer a madeiras exóticas, como se fazia antigamente.”

Como em Portugal não há público suficiente para alimentar este nicho, foi fora de portas que o atelier ganhou força. Por várias pontes, Pedro foi construindo uma rede e hoje recebe encomendas do Brasil, Estados Unidos, Japão, França, Espanha ou Irlanda, como o virginal italiano inspirado num original do século XVI, em desenvolvimento junto às ferramentas. É uma espécie de cravo que vive assim que se movem os saltarelos, pequenas peças de madeira que se cortam minuciosamente e que vão ser o elo de ligação entre as teclas e as cordas. “Este é para um senhor alemão que vive no Sul de França” e está a ganhar forma, entre cortes e colagens, a partir de uma planta vinda do Museu de Música de Leipzig, na Alemanha. Pode demorar um ano a ser feito. Pedro até poderia ser mais rápido, mas escolheu a lentidão como ritmo para encaixar a música.       

O mais longe onde até hoje chegaram os instrumentos do Atelier Rumor foi o Japão, até à casa de “um homem que tinha a música como hobby” e que “queria um órgão regal”, um instrumento particularmente utilizado no contexto religioso ou por músicos itinerantes no século XVI, dada a facilidade de transporte, mas que a partir das mãos de Pedro Ferreira ganha um novo enquadramento. A ideia, aliás, nunca é “fazer uma réplica”. “Cada instrumento é diferente”, tanto no aspecto, como som, no toque, partindo da identidade de um lugar e de um tempo. “É por isso que não faz sentido pensar nisto numa lógica industrial.”

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Ouvindo a reverberação clássica do clavicórdio ou olhando para as plainas, grampos, lixas, goivas e formões, pode parecer que estamos na gruta de um carpinteiro do século XVII, mas dando a volta pelos fundos dois compartimentos desmancham esta ideia de viagem ao Barroco. Um tem um computador onde Pedro estuda e desenha órgãos e violas da gamba – uma espécie de híbrido do violoncelo com o alaúde, desenvolvido no século XV e que tem como marca estética a escultura de uma cabeça no extremo do cravelhal –, entre outros instrumentos; outro é um estúdio de gravação, onde mistura os acordes do seu clavicórdio com o zunido de uma taça de vidro, já para não falar de samples sintetizados.

“Também me interessa muito a música electrónica”, esclarece Pedro. Não será de estranhar, até, se no futuro o quotidiano do Atelier Rumor (assim se chama) siga uma trajectória diferente, com a construção de instrumentos completamente novos, sem nome, sem predefinição e sem fronteiras entre o analógico e o digital. “Para mim não há uma divisão de tempo na questão do som”, mas apenas diferentes potencialidades, afirma o artesão.

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