Prometeu e os tormentos do Brexit: e agora, Boris Johnson?

Boris Johnson vê-se como um Prometeu mitológico, atormentado pela ousadia de querer levar os britânicos a sair da União Europeia a 31 de Outubro.

1. Na mitologia da Grécia antiga, Prometeu é um titã defensor da humanidade entre os deuses do Olimpo. Num dos episódios que mais captou a imaginação ocidental ao longo da história, roubou o fogo aos deuses para o dar aos mortais. Zeus, receando que os humanos ficassem tão poderosos quanto os próprios deuses, puniu-o, deixando-o amarrado a uma rocha por toda a eternidade. Uma águia gigante comia o seu fígado, o qual se regenerava todas as noites, pelo que a punição se tornou eterna — assim diz o mito na sua versão mais conhecida. O mito é poderoso. Tem múltiplos simbolismos e possíveis interpretações. Na mais recente versão, apresentada na Assembleia Geral das Nações Unidas por Boris Johnson, Prometeu está a ser punido pela ousadia britânica de querer sair da União Europeia, uma ousadia maior do que roubar o fogo aos deuses na mitologia grega. (Ver “UN General Assembly 2019: Boris Johnson compares Brexit to endless torment suffered by Prometheus”​ in Telegraph 25/09/2019).

2. Os “inimigos do povo”, o establishment político-judicial-empresarial, que atormentam Prometeu e os Brexiteers, voltaram a atacar. O Primeiro-Ministro britânico respeita a decisão judicial, mas discorda fortemente dela. É esta a mensagem política que Boris Johnson rapidamente procurou passar após ser conhecido o acórdão judicial de 24/09/2019 do Supremo Tribunal do Reino Unido (ver The Supreme Court, [2019] UKSC 41 de 24/09/2019, R (on the application of Miller) (Appellant) v The Prime Minister (Respondent) Cherry and others (Respondents) v Advocate General for Scotland (Appellant) (Scotland)). Nele foi declarada a ilegalidade de encerramento da sessão parlamentar (prorogation) por um período tão longo como tinha sido feito, terminando apenas a 14 de Outubro. A decisão judicial foi tomada em última instância, após duas decisões judiciais anteriores contraditórias, uma na Escócia (Court of Session de Edimburgo) e a outra em Inglaterra (High Court of Justice de Londres). A decisão do Supremo Tribunal do Reino Unido é, sem dúvida, marcante em termos jurídicos e políticos e tem consequências no Brexit. Como é usual em casos politizados, a leitura que prevalece na sociedade é uma leitura política e não jurídica. Mas antes de uma análise política é necessário olhar para a decisão jurídica.

3. “É impossível concluirmos, com base nas provas que nos foram apresentadas, que havia qualquer razão — muito menos uma boa razão — para aconselhar Sua Majestade a suspender o funcionamento do Parlamento por cinco semanas, de 9 ou 12 de Setembro a 14 de Outubro. Não podemos especular, na ausência de mais provas, sobre quais poderiam ter sido essas razões. Daqui resulta que a decisão foi ilegal” (ponto 61 do acórdão judicial). Para esta conclusão judicial foi decisivo o testemunho de um antigo Primeiro-Ministro do Partido Conservador, John Major (um Remainer). Ele próprio, no início dos anos 1990, enfrentou a revolta dos deputados do seu próprio partido contra a ratificação do Tratado de Maastricht. Este explicou em tribunal que não conhecia nenhum caso em que o trabalho de preparação da nova legislatura demorasse tanto tempo (ponto 59). “O trabalho no Discurso da Rainha varia de acordo com o tamanho do programa. Mas um tempo típico é de quatro a seis dias.” Assim, o conselho de Boris Johnson à Rainha, de encerrar o Parlamento por um período tão alargado, não apresentou uma “justificação razoável” para uma “acção que teve um efeito tão extremo” sobre os fundamentos da democracia (ponto 58).

4. Para a compreensão deste caso é relevante notar que o Supremo Tribunal do Reino Unido considerou também que, no exercício deste poder do executivo, “tem de ser concedida ao Governo uma grande autonomia na tomada de decisões dessa natureza.” O Tribunal reconheceu, ainda que de forma implícita, os contornos políticos do poder de prorogation, isto é, de terminar uma sessão parlamentar. Trata-se, segundo os juízes do Supremo Tribunal, de um poder do executivo que, todavia, não é irrestrito no seu exercício. Pelo contrário, é limitado por princípios jurídico-constitucionais, daí ser susceptível de controlo judicial (justiciability). Na tradição constitucional britânica, que é de uma Constituição não codificada, é um poder da Coroa exercido de acordo com o parecer do Privy Council. Na prática, há mais de um século e meio, é uma formalidade — desde a Rainha Vitória em 1854, que nenhum monarca vai directamente ao parlamento proclamá-la. A ilegalidade de um período tão longo entre o fim da sessão parlamentar e o início da nova decorreu da ausência de “uma justificação razoável”. Notam os juízes que a única explicação dada “foi centrada na necessidade de um novo discurso da Rainha e nas razões para este ser efectuado na semana que começa a 14 de Outubro, e não na semana anterior. Mas por que razão isso precisa de uma suspensão do Parlamento por cinco semanas?”

5. A decisão do Supremo Tribunal do Reino pode ser explicada por razões fundamentalmente ideológicas? Foi tomada por juízes Remainers “inimigos do povo”? É indiscutível que um caso destes levanta delicadíssimas questões de separação entre o político e o jurídico, para as quais ninguém tem uma resposta definitiva. É também fortemente criticável a invasão do político pelo jurídico — e a politização da justiça —, que frequentemente se observa. No Reino Unido, a complexidade das questões político-jurídicas levantadas pelo Brexit aumentaram drasticamente a sua intensidade e visibilidade deste problema na opinião pública. Todavia, importa insistir na ideia, a matéria sobre a qual os juízes tiveram de se pronunciar é extraordinariamente delicada, estando, como notado, num ponto de intersecção entre o jurídico-constitucional e o político. Qualquer decisão, incluindo a recusa de uma decisão judicial por ser considerada matéria política, seria sempre objecto de contestação. O facto de a decisão ter sido tomada por um colectivo de onze juízes, de forma unânime, é relevante, embora não decisivo, em termos do argumento da neutralidade dos juízes. Esta última, todavia, em termos absolutos, não existe, muito menos nestes casos. Os juízes não puseram em causa a natureza política da prorogation (o poder de encerramento de uma sessão parlamentar) como poder do executivo. Todavia, traçaram-lhe limites decorrentes de princípios jurídico-constitucionais, tendo em conta que a democracia britânica tem no parlamento a sua instituição fundamental. É questionável se não invadiram a esfera política, mas o Governo de Boris Johnson cometeu o erro de se defender concentrando tudo no argumento da natureza política da prorogation. Negligenciou o ataque jurídico pela via “justificação razoável” não tendo cortado caminho a essa tese com argumentos plausíveis. Assim, permitiu aos juízes — que tiveram a tarefa facilitada pelo depoimento de outro Primeiro-Ministro conservador, John Major — declararem a ilegalidade do acto sem se atolarem ostensivamente na política do Brexit.

6. Boris Johnson vê-se como um Prometeu mitológico, atormentado pela ousadia de querer levar os britânicos a sair da União Europeia a 31 de Outubro. É verdade que o establishment britânico, na sua grande maioria, é contra a saída da União Europeia. Muito provavelmente isso condiciona a governação e a margem de manobra política, como, aliás, foi bem visível com o Governo de Theresa May. Anteriormente, em 2015/2016, David Cameron tinha proibido a administração pública britânica de fazer quaisquer planos de saída da União Europeia, o que explica, em parte, a impreparação governamental para lidar com o Brexit, pelo menos nos primeiros tempos. Mas querer justificar tudo o que falha dessa forma é entrar no terreno das “teorias da conspiração”. Boris Johnson devia olhar primeiro para a sua própria incoerência e falhas estratégicas, sejam elas da sua autoria directa ou resultado de ideias dos seus conselheiros mais próximos que, todavia, concordou em implementar. O caso de Dominic Cummings é, provavelmente, um dos exemplos mais conhecidos desse problema. Foi um estratega político maior da campanha do sucesso da votação a favor da saída da União Europeia no referendo do Brexit em 2016. Agora, numa posição que faz lembrar Maquiavel e os seus conselhos a “O Príncipe”, é conselheiro de Boris Johnson. Menos conhecida é Nikki da Costa, directora dos assuntos legislativos do Governo, que já tinha trabalhado com Theresa May. Foi autora do memorando que os juízes do Supremo Tribunal consideraram não conter uma “justificação razoável”. Esse parecer legal provavelmente lacunar, ao qual Boris Johnson deu o seu aval político, terá servido para aconselhar a Rainha a terminar a sessão parlamentar, reiniciando-a apenas a 14 de Outubro. Prometeu não está apenas a ser atormentado pelos subterfúgios jurídico-políticos dos Remainers, mas também pelo fogo ateado pelos seus próprios conselheiros Brexiteers.

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