O dia em que Tancos ameaçou assaltar a campanha

Advogado garante que o “papagaio-mor” referido por Vasco Brazão, e que estaria a par do encobrimento, não era o Presidente da República. Maior parte dos líderes políticos quis distância do caso das armas.

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O Presidente da República na sua visita aos paióis depois do assalto Miguel Manso

O advogado Ricardo Sá Fernandes, que representa um dos militares arguidos no processo de Tancos, garantiu nesta quarta-feira que as escutas em que o seu cliente, Vasco Brazão, é apanhado a falar do “papagaio-mor do reino” não se referem ao possível envolvimento do Presidente da República neste caso. 

Em causa está uma conversa telefónica que o ex-porta-voz da Polícia Judiciária Militar (PJM) teve com a irmã. “Vais ver que o papagaio-mor não vai falar sobre Tancos tão cedo. (...) O Sá Fernandes [o seu advogado] já lhes fez chegar, já fez chegar à Presidência, que eu tenho um email que os compromete”, declara. O diálogo foi gravado em 5 de Abril passado e consta do acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa que revoga o regime de prisão domiciliária do antigo oficial da PJM.

Em declarações a vários órgãos de informação, Ricardo Sá Fernandes garantiu ontem que não era a Marcelo Rebelo de Sousa que o seu cliente se estava a referir: “Ele não teve em mente o senhor Presidente da República. Tal como eu, teve a posição corajosa de dizer que o ministro da Defesa da altura tinha tido conhecimento de como tinha ocorrido o aparecimento das armas. Também tem hoje completa segurança na afirmação de que, no conhecimento dele, o Presidente da República não soube o que é que se estava a passar. É completamente abusivo estar a imputar ao major Vasco Brazão qualquer juízo relativo ao envolvimento do Presidente no conhecimento dos factos que ocorreram em Tancos.”

Horas antes da entrada em cena de Sá Fernandes, Marcelo Rebelo de Sousa tinha já interrompido a prática de não comentar questões internas no estrangeiro. “Para que não restem dúvidas, por uma questão, não só de honra pessoal, mas porque estou aqui a defender a posição de Portugal... É bom que não esteja a defender a posição de Portugal na Assembleia Geral das Nações Unidas ao mesmo tempo que surge uma vaga dúvida sobre se o Presidente é criminoso; é bom que fique claro que o Presidente não é criminoso”, referiu em Nova Iorque.

“Isto é uma maneira de fazer uma pré-acusação ao Presidente antes de haver uma acusação. Nas vésperas de a acusação ser conhecida, tentar montar uma pré-acusação é um clássico, mas politicamente é uma grande estupidez política”, comentou ao Expresso fonte próxima do chefe de Estado, que não escondeu, em privado, o quanto ficou furioso com aquilo que terá visto como uma tentativa de desviar o foco das atenções do Governo e do PS. “Uma estupidez política”, que pode ter custos para o primeiro-ministro. O Expresso também notou que “Rio e Jerónimo defenderam Marcelo, mas Costa não”.

O processo de Tancos, que tem o ex-ministro Azeredo Lopes entre os arguidos e é relativo ao acordo estabelecido com os assaltantes aos paióis de Tancos para a devolução do material de guerra, e ao encobrimento da operação, chegou bem cedo ao terceiro dia de campanha para as legislativas. Mas foram poucos os candidatos que quiseram pegar na questão das armas, e muito menos para visar o chefe de Estado.

André Silva, do PAN, defendeu que Tancos deve ficar fora dos temas eleitorais e considerou o alegado envolvimento do Presidente uma especulação. O secretário-geral do PS, e primeiro-ministro, António Costa, foi ainda mais sintético: trata-se de um assunto da Justiça. “Não deve ser um caso de eleições”, disse também a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins.

E Rui Rio assumiu a defesa da Presidência. “As notícias carecem de ser comprovadas, Portugal precisa de uma protecção evidente ao órgão que é a Presidência da República (...) Não se brinca com notícias sobre a Presidência da República.”

Já a líder do CDS, Assunção Cristas, recusou-se a comentar as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa em Nova Iorque, mas fez fogo sobre António Costa. “Para o CDS, o primeiro-ministro tem estado muito mal em muitas situações, não só por causa de Tancos.”

Jerónimo de Sousa não se quis meter por esses caminhos. “Ouvi as declarações do Presidente a afirmar claramente que não tem nada a ver com aquela situação menos clara. É a palavra do Presidente da República, não tenho nenhuma razão para suspeitar”, disse o líder do PCP.

A questão do conhecimento que o Presidente, o ministro da Defesa e o primeiro-ministro teriam tido na montagem da operação de recuperação das armas roubadas em Junho de 2017 dos paióis de Tancos ocupou boa parte das sessões da comissão parlamentar de inquérito sobre o caso.

Aí, o coronel Luís Vieira, ex-director-geral da Polícia Judiciária Militar (PJM) e também arguido no processo, contou aos deputados que se queixou, oralmente e por escrito, a Marcelo Rebelo de Sousa do facto de a Procuradoria-Geral da República ter atribuído a investigação do roubo e achamento do material furtado. Foi o próprio oficial que o revelou aos deputados da comissão parlamentar de inquérito.

“O sr. Presidente perguntou-me algumas coisas sobre a investigação e eu disse que não estava ainda em condições de dar nenhuma informação, nem iria dá-la na presença de todas aquelas 14 testemunhas”, relatou ao deputado António Carlos Monteiro, do CDS-PP, na audição de 10 de Abril último.

O episódio relatado pelo antigo responsável da PJM ocorreu a 3 de Julho de 2017 durante uma visita do Presidente da República aos paióis de Tancos, depois do assalto. Marcelo na foi acompanhado pelo ex-ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, pelo então secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrelo, por diversas chefias militares e oficiais do Exército.

“Alertei para a minha preocupação com a decisão da sra. procuradora-geral da República [então Joana Marques Vidal]. Na reunião, o sr. Presidente acabou por dizer que ia falar com a sra. procuradora-geral da República e aconselhou o sr. ministro da Defesa a falar com a sua congénere ministra da Justiça, e assim acabou a reunião”, concluiu.

Pouco mais de um mês depois, o coronel Luís Vieira fez novas diligências por Tancos ter sido subtraído à PJM pela Procuradoria-Geral da República [PGR). “No dia 4 de Agosto [de 2017] entendi que ficasse para memória futura aquilo que eu tinha dito verbalmente ao sr. ministro da Defesa Nacional, à procuradora-geral da República e ao sr. Presidente da República, por escrito”, descreveu.

É deste empenho que nasce um memorando. “Fui ao gabinete do sr. ministro da Defesa, que me recebeu, entreguei esse memorando, impresso em papel da PJM, com o timbre da PJM, que tem a epígrafe, data e tem a minha assinatura”, prosseguiu. “De seguida, telefonei ao sr. general Cordeiro [João Cordeiro], chefe da Casa Militar do sr. Presidente da República, a dizer que gostava de lhe fazer chegar um documento. Ele disse que mandava um funcionário ter comigo, mandou e entreguei a este funcionário o mesmo memorando”, afirmou.

Na audição perante os deputados, o coronel Luís Vieira, actualmente na reserva, explicou o que, por várias vezes, referiu como pressão política. “O sr. Presidente da República, comandante das Forças Armadas, muitas vezes veio à televisão dizer que queria uma investigação célere, o esclarecimento deste facto corrido em Tancos. Referia-me, concretamente, ao sr. Presidente da República”, esclareceu.

Já em reposta ao deputado do PCP Jorge Machado, na mesma audição de 10 de Abril, o ex-director-geral da PJM negou ter informado ou enviado a Belém um memorando da sua autoria e do major Vasco Brazão, oficial daquela polícia que dirigiu a recuperação do material furtado. Este documento foi dado ao tenente-general Martins Pereira, então chefe de gabinete do ministro Azeredo Lopes, mas não foi entregue pelos seus autores ao ex-titular da Defesa.

O escrito de duas páginas, sem assinaturas, data, timbre ou epígrafe, relata como foi montada a recuperação do material de Tancos. Na prática é a confissão de um delito, de uma operação desenvolvida à margem do Ministério Público e da PJ: descrevia os meandros do achamento, continha por três vezes a palavra “acordo” e referia-se uma vez a um “contrato”.

 “A única coisa que entreguei ao sr. chefe da Casa Militar [tenente-general João Cordeiro] foi o documento (…) de 4 de Agosto”, repetiu ao parlamentar comunista, referindo-se ao memorando com a sua opinião sobre a atribuição pela PGR da investigação à PJ. 

O tenente-general João Cordeiro também recebeu em audiência, a 4 de Junho de 2017, o tenente-general Faria de Meneses, então à frente do Comando das Forças Terrestres do Exército, que foi a Belém protestar pela exoneração temporária dos coronéis que comandavam as cinco unidades envolvidas na segurança dos paióis.

O próprio oficial, na reserva por discordar daquela sanção, em 14 de Fevereiro deste ano relatou aos deputados da comissão de inquérito esta démarche. Tinha como objectivo que o Presidente da República actuasse, mas a iniciativa foi infrutífera, contou. Marcelo já recebera as chefias militares e o apelo de Faria de Meneses não teve seguimento.

Depois dos intensos meses do Verão e Outono de 2017, o tenente-general João Cordeiro deixou de ser chefe da Casa Militar do Presidente da República. A 30 de Novembro daquele ano, o site da Presidência divulgou a sua saída: “O Presidente da República aceitou o pedido de resignação do seu chefe da Casa Militar, tenente-General João Ramirez Cordeiro, que cessa funções, a seu pedido e por motivos pessoais, no fim do mês de Dezembro, e a quem exprimiu os seus agradecimentos pela forma excepcionalmente competente, exemplar lealdade e enorme dedicação com que exerceu as suas funções, em verdadeiro espírito de serviço público.”

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