Higienização da linguagem

Esta moda absurda e totalitária de policiar a linguagem condiciona a liberdade de expressão e o direito à diferença.

Na hipótese Sapir-Whorf, da relatividade linguística, as palavras que usamos influenciam o nosso pensamento e determinam a forma como vemos a realidade. Se a tese for verdadeira, no limite, mudando a maneira como falamos, muda-se a sociedade. É este o objectivo de movimentos vanguardistas, de várias ideologias, que pretendem higienizar a linguagem, censurando o uso das expressões que consideram “politicamente incorrectas”.

Como princípio, está certo fazer o possível para que a comunicação, escrita ou oral, não ofenda grupos de pessoas estigmatizadas pelas suas características sociais. Anedotas e estereótipos sobre loiras, ciganos, negros, homossexuais, coxos e gordos são formas de expressão que fomentam a discriminação e exclusão social. Mas os higienistas da linguagem levam a vontade de purificação ao absurdo de interditar palavras comuns, sem qualquer significado ofensivo. Os exemplos do ridículo são muitos. A organização PETA (People for the ethic treatment of animals) sugeriu a revisão de provérbios violentos sobre animais: “agarrar a flor pelos espinhos”, em vez de “agarrar o touro pelos cornos”; “alimentar dois coelhos com a mesma cenoura”, em vez de “matar dois coelhos duma cajadada”. Na Inglaterra, as expressões blackboard, black-coffee e blackmail são banidas porque black (preto) é racista. No restaurante do parlamento inglês, a sobremesa tradicional spotted dick mudou para spotted richard, por dick significar pénis em calão. A Universidade de Wells substituiu brainstorming por thought showers, para não ofender as pessoas epilépticas (à letra, brainstorm significa tempestade cerebral). Uma agência de emprego de Hertfordshire recusou um candidato que se apresentou no currículo como trustworthy e hard-working porque isso estigmatizava os candidatos unreliable (não confiáveis). Escolas americanas substituíram christmas-tree, ofensivo para os não cristãos, por holiday-tree.

Esta moda absurda e totalitária de policiar a linguagem condiciona a liberdade de expressão e o direito à diferença. Restringe o debate público sobre questões socialmente relevantes, acabando por impedir a promoção dos valores que visa defender. Quando proibimos o nosso interlocutor de se expressar livremente, de verbalizar os seus erros e preconceitos, abdicamos da possibilidade de o contrariar e educar. Deixamos de poder avaliar e discutir opiniões diferentes das nossas, eventualmente estúpidas, não por as termos erradicado mas simplesmente porque proibimos a sua exteriorização. Por outro lado, a adulteração forçada do significado normal de palavras comuns contribui para reforçar preconceitos negativos e estereótipos. Uma pessoa negra não se ofenderá com as expressões “peste-negra”, “lista-negra” ou “mercado-negro” até alguém se lembrar de lhes atribuir uma conotação racista, do mesmo modo que uma pessoa branca não se sente visada com as expressões “crime de colarinho branco” ou “branca de neve”.

Estes movimentos sociais vanguardistas, pela sua grande agressividade e irracionalidade, condicionam a liberdade e o pluralismo. As pessoas obrigam-se a medir cada palavra, com receio de serem imediatamente rotuladas como qualquer-coisa-fóbicas. Os políticos adaptam a linguagem e neutralizam todos os conceitos levemente problemáticos. Até a imprensa se retrai na descrição da realidade. Dois exemplos recentes mostram isso. A ministra da Justiça disse há tempos numa conferência que há negação do racismo em Portugal. Vários jornalistas acharam que o facto de ser negra era relevante para a compreensão da notícia, porém, por falta de coragem, descreveram-na com o eufemismo neutro: “a ministra nascida em Angola”. Noutro exemplo, um homem foi morto a tiro por recusar o casamento arranjado para a sua filha adolescente, que estaria prometida a outra família. Em nenhum momento o jornalista teve a coragem de dizer que eram famílias da comunidade cigana, apesar de isso ser necessário para a correcta descrição do facto noticiado.

O condicionamento exagerado da liberdade é estranho à natureza humana e acabará por ser contrariado. Nos Estados Unidos, onde as divisões são mais vincadas, um relatório recente (Hidden tribes: a study of America’s polarised landscape, 2018) mostrou que 80% das pessoas consideram o “politicamente correcto” um problema, sendo a resposta preponderante, também, nos americanos com ascendência asiática (82%), hispânica (87%), índia (88%) e africana (73%). A sociedade tende a buscar o equilíbrio e a reagir contra o que viola o senso comum. O que parece absurdo, normalmente é absurdo e não prevalece.

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