B.F.F., o novo vídeo de Valete, glorifica a violência machista?

B.F.F., o novo single de Valete, nome histórico do hip hop português, é uma ficção onde se encena fúria machista com traição como pano de fundo. Acusado de legitimar a violência doméstica e a misoginia, Valete classifica a polémica como “vazia”. Reclama a sua liberdade artística enquanto autor e afirma: “Se eu apresentasse o mesmo num livro ou num filme, não haveria problemas”.

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BFF é o segundo single de Em Movimento, aquele que será o terceiro álbum de Valete Miguel Manso

Um homem surpreende a sua mulher na cama com o melhor amigo. Caçadeira em punho, insulta-a, acusa-a de viver às suas custas, enfia o cano da arma na boca dela, ameaça matá-los a ambos. Antes de o fazer, acorda. Não passara de um pesadelo. Suado, levanta-se para tomar um banho. Quando sai do quarto, o melhor amigo esgueira-se do armário onde estivera escondido. É, esta, resumidamente, a história de B.F.F., o novo single de Valete, nome histórico do rap português, segundo avanço para o álbum Em Movimento. Uma canção que provocou uma reacção indignada de quem considera que a letra e o vídeo normalizam a misoginia e os números trágicos da violência doméstica em Portugal. Valete desvaloriza a polémica. Classifica-a como “vazia” — di-la criada por “um grupinho de feministas popstar”, e reclama a sua liberdade artística enquanto autor. “Se eu apresentasse o mesmo num livro ou num filme, não haveria problemas”, afirma ao PÚBLICO.

Sónia Tavares, vocalista dos Gift, foi uma das figuras públicas a abordarem a questão, comentando na conta de Instagram do músico: “Anda aqui uma mulher a fazer campanhas contra a violência doméstica e tu baralhas-me isto tudo. (…) Uma voz activa como a tua era essencial na campanha contra a violência”. O humorista Diogo Faro, por sua vez, usou da ironia no Twitter: “A nova música do Valete está excelente. É importante em 2019 continuar a retratar a mulher como propriedade do homem e o homem como um atrasado mental”.

Só mais à frente no tempo conheceremos Em Movimento na totalidade. Aquele que será o terceiro álbum de Valete está ser revelado canção a canção, com o respectivo vídeo acompanhante, como um puzzle que se vai revelando peça a peça. O primeiro single, Colete amarelo, chegou em Junho. No final de Agosto, foi lançado B.F.F.. Se Colete amarelo era anúncio de um regresso muito aguardadoServiço Público, o segundo álbum, foi editado há longos 13 anos —, em que o rapper vincava a sua posição e estatuto — “o novo Valete sou eu!”, diz a determinada altura —, B.F.F. é uma narrativa violenta, gráfica  curiosamente já sugerida numa quadra do single anterior: “Fico fodido quando penso no mano Rodrigo/ Que apanhou a dama dele na cama com o melhor amigo/ Cortou o gajo bem feito, três cortes no peito/ Cobiçar a dama dum tropa é o máximo desrespeito”.

Para Valete, nascido Keidje Torres Lima em 1981, na Damaia, a polémica funda-se acima de tudo “em preconceitos em relação ao rap”. Diz ao PÚBLICO que ela parte de “quem não o respeita artisticamente, quem o imagina como rapazes a cantarem o que pensam e sentem, sem perceber que existem nele várias possibilidades criativas”. No caso específico de B.F.F., diz ter agido como um “novelista” que escreve uma história e a transforma numa “obra cinematográfica”. Reconhecido pelo activismo que transporta para a sua obra — quer na acção política radical (Precisamos de um homem novo, menos materialista”, dizia ao PÚBLICO em 2012), quer na consciencialização para temas sociais (na célebre Roleta russa fazia a pedagogia da protecção contra doenças sexualmente transmissíveis; na altura em que tocou e gravou com Capicua, Emicida e Rael no super-grupo Língua Franca defendeu uma maior presença feminina no hip hop como forma de ajudar a erradicar comportamentos machistas —, Valete recusa ficar preso a essa imagem: “Já fiz 500 sons de cariz social e continuarei a fazer, mas farei também outras coisas. Não vou cair na armadilha de ser um artista unidimensional”. Mais à frente na conversa com o PÚBLICO, definir-se-á como “um rapper hardcore, politicamente hardcore”: “Nunca escrevi música para crianças, isto é rap cru, é a realidade crua”.

A polémica reacende a questão da legitimidade artística vs responsabilidade social, discussão com longa história na música popular urbana — grupos de death-metal acusados de incitar ao homicídio e à violência religiosa, o gangsta rap apresentado como glorificador da violência, Marylin Manson responsabilizado por suicídios juvenis ou pelo massacre de Columbine. No vídeo de B.F.F., ouvimos os versos de Valete, que co-realizou com Johel Almeida e que não surge no vídeo (no ecrã vemos os actores Tomé Quirino, Índia Branquinho e Bruno Bernardo), darem voz à violência irada, misógina, do protagonista: “Puta, cona largada, pura insana/ Encharcada de moralismo, sempre armada em puritana/ Agora vais sentir a sequela, com a caçadeira enfiada na tua goela/ A bala a perfurar a traqueia, e o teu corpo como plateia/ Enquanto a morte fraseia”.

Rejeitando qualquer associação da música e do vídeo a uma legitimação da violência doméstica e do homicídio passional — “repito, já li mil livros e já vi mil filmes onde se incluem crimes passionais” —, devolve a crítica aos que criticam o vídeo. “Vivo numa realidade onde algumas mulheres são escuras de mais para terem outro emprego que não seja nas limpezas. Mulheres que andam há anos a mendigar uma autorização de residência que o Estado português se recusa a dar. Vivo uma realidade onde essas mulheres trabalham 12 horas por dia e depois ainda têm que ir cuidar dos filhos, mulheres que desde o início da vida conjugal lidam diariamente com a violência doméstica. Estas mulheres deveriam ser a prioridade feminista em Portugal. E as activistas feministas que estão aqui no terreno, as feministas soldado, não estão a criticar o B.F.F.. Percebem quais são as prioridades”.

Confrontado com comentários ao vídeo deixados na plataforma YouTube que aplaudem o comportamento do protagonista, defendendo a sua violência machista, Valete define a sua posição. “No momento em que actuo no departamento da música popular chego a muita gente. As pessoas que ouvem Valete são as pessoas que existem na sociedade e eu acredito que uma grande percentagem da sociedade é machista. Alguns homens e algumas mulheres estão em processo de cura dessa doença social. Outros e outras são abertamente machistas. Infelizmente para mim e para a maioria dos artistas, essas pessoas também são o nosso público.”

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