É melhor acender velas do que amaldiçoar a escuridão

Já apareceste em forma de despejo. A mãe jurou que nunca fomos incumpridoras. Correram connosco do cubículo miserável que nos arrendavam ao custo de uma vaca sagrada.

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Mag Rodrigues

Se fores capaz, anda cá outra vez. Dou-te dez tiros inventados com a minha pistola de dedos e a minha mãe dá cabo de ti com os seus poderes incríveis que te recambiam num lampejo. Já te estragámos os planos em várias ocasiões. Não sabemos artes marciais, não temos armas de verdade, mas, e podes apostar, nunca nos deitarás abaixo.

Já apareceste em forma de despejo. A mãe jurou que nunca fomos incumpridoras. Correram connosco do cubículo miserável que nos arrendavam ao custo de uma vaca sagrada — não faço ideia quanto custa, é que nunca fui à terra da mãe, mas acredito que deve ser bastante, pelo menos imagino que custe bastante uma vaca toda em ouro como um buda —, é verdade, mas a mãe não se encolheu.

Em menos de uma semana, desencantou um novo buraco para descansarmos os ossos à noite. É ainda mais pequeno e fétido do que o anterior e, em vez de duas camas, tem só uma; alegra-me partilhar o leito com a mãe, como um par de amigas, de irmãs. A tua forma mais valente foi quando surgiste como uma doença. Os clientes começaram a queixar-se no restaurante do tio Hari. A comida não estava tão boa como antigamente. A mãe foi dispensada durante uns dias para ver se descansava e tornava a ganhar mão e cabeça na cozinha.

Não aguentava ver a mãe enterrada na cama dia e noite, numa letargia que lhe comia a alma. Teve de tomar uns comprimidos para recuperar a fé no dia de amanhã. O tio Hari explicou-me que às vezes as pessoas têm de recorrer à medicina para fazerem as pazes com os deuses. E assim foi, ao fim de umas semanas, a mãe já estava de volta à cozinha do restaurante, a confeccionar iguarias que restituem divindades através das papilas gustativas.

Sabes uma coisa? Eu e a mãe aguentamos tudo. Podes aparecer à vontade e da forma que te apetecer. Nós somos uma equipa. A mãe disse-me que quando tu apareces só uma coisa é totalmente eficaz. Estarmos juntas e o nosso amor, claro. Diz também que esta palavra não pode ser usada em vão. O amor é uma coisa mesmo poderosa, cheia de luz, e que não deve ser gasta frivolamente, porque é uma acção que deve ser usada com economia. As acções são sempre autênticas, não são como as palavras. Podemos dizer que demos um pontapé e isso ser mentira. Mas não podemos dar um pontapé a alguém e dizer que foi a fingir, porque levar um pontapé aleija mesmo, não é um aprumo de sintaxe.

A mãe também me disse que quem tem medo não deve comprar um cão. A mãe diz que “é melhor acender velas do que amaldiçoar a escuridão”. Por isso, nem sequer te nomeamos. Da nossa parte nunca terás importância. Nós, eu e a mãe, somos pessoas afoitas. Podes aparecer quando te apetecer, mesmo no escuro, porque enquanto estivermos juntas nunca nos há-de faltar luz. 

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