Equilibrar o que se desequilibrou

Que cidades estamos a construir quando não se permite à maioria da população aí encontrar casa e em que parecem ficar apenas os mais ricos, os mais pobres e aqueles que aceitam viver em condições pouco aconselháveis?

Quando uma coisa é, ao mesmo tempo, bem de primeira necessidade para uns e produto financeiro para outros, gera-se um conflito de interesses que tem sempre o mesmo resultado: aqueles que realmente necessitam dessa coisa deixam de ter meios para a aceder a ela. Prova disso é o que tem acontecido, nos últimos anos, no domínio da habitação.

A crise económica levou à concentração do capital, depois dirigido para certos segmentos do sector imobiliário, visto como produto financeiro seguro em tempo de juros baixos, instabilidade bancária, fragilidade da economia e incerteza geopolítica. Em Portugal, a aposta centrou-se na reabilitação dos núcleos históricos esquecidos que voltavam a ser objecto de procura – em particular Lisboa e Porto – dinâmica que se cruzou com a descoberta dessas mesmas cidades pelo turismo, entre “low cost” e Airbnb.

Os governos de então viram aí potencial para ajudar a economia nacional a sair da crise. Em especial a partir de 2012, sucederam-se políticas públicas que visaram aproveitar o contexto e incentivar o investimento: regime do alojamento local, regime da reabilitação urbana, vistos gold, novo regime do arrendamento urbano, regime excepcional da reabilitação urbana, benefícios fiscais. Assim se alteraram as regras do mercado e precipitaram os acontecimentos.

O resultado é conhecido. As casas passaram a jogar em diferentes mercados ao mesmo tempo: são habitação, alojamento turístico, produto financeiro. Os valores das rendas dispararam – em particular em Lisboa e no Porto – e quem delas necessita para viver, já não lhes consegue aceder. A procura de casa faz-se agora cada vez mais longe dos grandes centros - para muitos, o lugar onde moraram uma vida, ou encontraram emprego. Até onde? A mais de 20 minutos de viagem em automóvel, os quais facilmente se transformam em mais de uma hora para cada lado, se considerarmos horas de ponta ou percursos em transportes públicos. Horas roubadas ao descanso de quem trabalha. E estes tempos irão certamente aumentar, à medida que o fenómeno se alastra, qual onda de choque.

O recente estudo do MDT-CEAU-FAUP pretendeu apenas quantificar e cartografar as condições que obrigam tantas famílias a abandonar as suas casas e a procurar nova morada cada vez mais longe das suas vidas – histórias que nos lembram que o jogo abstracto dos mercados tem impactos muito concretos na vida das pessoas. Mas os impactos vão para além dos dramas dessas famílias, e levantam-nos outras questões. 

Estarão as autarquias e autoridades metropolitanas a cientes do aumento de pressão sobre os sistemas de transportes que poderá resultar da crescente dificuldade de quem trabalha nos centros de Lisboa e Porto aí poder residir, num momento em que aumentam a actividade e os empregos nestes centros? Que consequências terão as cada vez mais demoradas deslocações diárias para a saúde de quem as faz? E os que escolhem ficar, aceitando para isso viver em condições de conforto e salubridade questionáveis, ou sobreviver com rendas muito acima das suas possibilidades poupando para isso noutras necessidades básicas: quais as consequências para a sua saúde?

Não perdem competitividade as cidades que não conseguem fixar população jovem com rendimentos medianos? Quais as empresas que desejam fixar-se em territórios onde os salários que pagam não permitem aos seus funcionários aceder a uma habitação condigna próxima do local de trabalho? Quais as consequências, a prazo, de um contexto que parece voltar a empurrar todos para o crédito hipotecário? Sobretudo: que cidades estamos a construir quando não se permite à maioria da população aí encontrar casa e em que parecem ficar apenas os mais ricos, os mais pobres e aqueles que aceitam viver em condições pouco aconselháveis?

E os outros municípios? Os que se encontram para lá da coroa de preços incomportáveis que envolve os grandes centros e para onde se irá agora dirigir a procura? Estarão eles a fazer os trabalhos de casa? O que estão a fazer para atrair os novos potenciais residentes e para terem condições de os receber? O que estão a fazer para evitar uma súbita subida dos preços da habitação resultante do aumento da procura, que venha a prejudicar aqueles que já aí residem? O que estão a fazer para que os novos residentes não se limitem a dormir aí – aumentando os movimentos pendulares – mas possam também aí encontrar emprego e espaços para as restantes actividades quotidianas?

São muitas perguntas. O certo é que a habitação não pode ser vista como um problema sectorial, nem só de alguns (dos mais pobres, dos inquilinos). É questão transversal, que toca todos, directa ou indirectamente. Até porque, muito provavelmente, aquilo que não se gastar agora em habitação pagar-se-á mais tarde em mobilidade, saúde, competitividade, etc.

Urge uma política de habitação mais robusta e para todos, capaz de mobilizar todos os intervenientes, das autarquias ao mercado passando pelo terceiro sector e academia, e que consiga articular ferramentas que, desde a mobilidade até ao emprego, têm impacto na equidade no acesso a uma habitação condigna e uma vida saudável. O problema é demasiado vasto para respostas que partam de um único actor ou ponto-de-vista. No entanto, o Estado deverá assumir aqui um papel central. É importante lembrarmo-nos do papel que a acção pública desempenhou no desencadear da actual crise de habitação, ao mudar as regras do jogo. É isso que nos permite agora esperar que seja o mesmo Estado a procurar equilibrar aquilo que desequilibrou.

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