Escassez, atrasos, protestos e pânico: são os riscos de um “Brexit” sem acordo, confirma Governo britânico

Downing Street publicou documento oficial que antevê efeitos de uma saída desordenada do Reino Unido da UE. Fornecimento de alimentos, remédios e combustível sofrerá disrupções e afectará os mais pobres e teme-se desordem pública em todo o país. Johnson desvaloriza, dizendo que é o “pior cenário possível” e garante não ter mentido à rainha quando propôs suspensão do Parlamento

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Preparativos para o no-deal incluíram simulação em Dover, em Janeiro, quando Theresa May estava ao leme do Governo britânico EPA/NEIL HALL

Quando em meados de Agosto o jornal britânico Sunday Times revelou documentos que davam conta de que o Governo de Boris Johnson antevia um cenário caótico para os primeiros meses após a saída do Reino Unido da União Europeia sem acordo, a 31 de Outubro, Downing Street apressou-se a esclarecer que essas estimativas estavam desactualizadas.

Na quarta-feira à noite, porém, e depois de obrigado pelo Parlamento, o executivo britânico publicou o texto oficial, que confirma as piores expectativas: escassez de alimentos, remédios e combustível; redução significativa do fluxo de trocas comerciais; impreparação das actuais estruturas alfandegárias e rodoviárias para lidar com os atrasos no controlo de bens; aumento dos preços e possibilidades elevadas de desordem pública em várias cidades e comunidades britânicas, entre outros desafios.

A publicação dos termos da chamada “Operação Yellowhammer, que o primeiro-ministro britânico diz ser uma previsão do “pior cenário possível”, surge na sequência da aprovação de uma moção, na Câmara dos Comuns, na segunda-feira, que exigia o Governo que revelasse toda a informação recolhida pela sua equipa sobre os preparativos para um “Brexit” sem acordo.

A imposição de controlos alfandegários em França “sobre todos os bens provenientes do Reino Unido”, o “espaço limitado nos portos franceses” e a “falta de preparação comercial”, refere o documento, faz antever que, pelo menos nos primeiros três meses após o “Brexit”, os camiões possam vir a ter períodos de espera “até dois dias e meio” para cruzarem a fronteira, via Canal da Mancha.

A dependência da comercialização de remédios nas rotas do canal “torna-os particularmente vulneráveis a atrasos rigorosos e prolongados”, prossegue, e uma vez que muitos deles têm prazos de validade curtos, “dificulta o seu armazenamento” atempado.

Quanto aos produtos alimentares, o cenário é igualmente preocupante, e o documento admite que, a par do combustível e da electricidade, o previsível aumento do preço da comida “afectará desproporcionadamente os grupos de cidadãos com baixos rendimentos”: “O fornecimento de certos de alimentos frescos será reduzido. Não haverá uma escassez generalizada em todo o Reino Unido, mas reduzir-se-á a oferta e a disponibilidade de alguns produtos e os preços vão aumentar. Algo que poderá ter um impacto nos grupos mais vulneráveis.”

É na reacção popular a estas situações de escassez que o Governo antevê maiores problemas. “Haverá protestos e contraprotestos em todo o Reino Unido, que poderão absorver recursos policiais significativos. E poderá também haver um aumento da desordem pública e de tensões nas comunidades”, prevê o número 10 de Downing Street.

Estimam-se ainda disrupções imediatas nos serviços financeiros transfronteiriços e na partilha de informações entre as autoridades policiais e de segurança britânicas e europeias.

E se para a entrada e saída de camiões no enclave britânico de Gibraltar, em Espanha, são esperadas demoras até quatro horas, para a fronteira entre Irlanda do Norte e República da Irlanda o cenário é tratado de forma menos pessimista. Isto porque o Governo, mesmo admitindo o regresso de algum tipo de controlo alfandegário, continua confiante em acabar com o backstop. Ainda assim, admite que esse controlo “provar-se-á insustentável devido aos significativos riscos económicos, legais e bio-securitários”.

“Estaremos prontos”, diz Johnson

Em resposta à onda de críticas que se levantou junto da oposição e da ala remainer do Partido Conservador esta quinta-feira, Boris Johnson desvalorizou o cenário de caos previsto na “Operação Yellowhammer” e garantiu que os preparativos foram “intensamente acelerados” nos últimos meses.

“É muito importante perceber que este documento trata do pior cenário possível. Qualquer Governo se prepararia para ele”, disse o primeiro-ministro. “Estou muito confiante que vamos conseguir um acordo com os nossos amigos europeus (…), mas se tivemos de sair a 31 de Outubro, estaremos prontos. Os portos estarão prontos, as comunidades agrícolas estarão prontas e todas as indústrias relevantes estarão prontas”, afiançou.

Na mesma intervenção, Johnson assegurou ainda não ter mentido à rainha Isabel II, quando o Governo apresentou os motivos para suspender o Parlamento durante quase um mês – gesto que os opositores ao hard-“Brexit” entendem como uma forma de retirar dias de trabalho aos deputados que querem evitar um no-deal.

Da moção validada pelos deputados para forçar o Governo a revelar os documentos sobre a saída da UE sem acordo constava ainda uma exigência para a publicação de todas as mensagens trocadas entre Dominic Cummings – cérebro da campanha do “Leave” no referendo de 2016 e principal conselheiro de Johnson – e restantes membros do executivo, sobre o tema.

Mas o Governo recusou cumprir essa parte da requisição dos deputados. Numa carta enviada ao promotor da moção, o conservador Dominic Grieve, o vice-primeiro-ministro, Michael Gove, justificou a decisão: “Seria inapropriado, em princípio e na prática, forçaria o Governo a infringir a lei e seria particularmente injusto para os indivíduos referidos”.

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