Os meus pneus

À altura em que escrevo há um actor que luta pela vida, alegadamente por ter querido ter um corpo perfeito, escultural.

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Ângelo Rodrigues Instagram

A História do belo e do feio, como o demonstrou Umberto Eco, nada mais é que a Humanidade reflectida ao espelho. Como em todos os conceitos indeterminados, cada época histórico-espacial vai preenchendo o que é um ser humano “bonito”.

Desde as regueifas ou pneus das mulheres deitadas de séculos anteriores, até à brancura alva que distinguia as nobres das mulheres de tez escura que labutavam no campo, desde os escravos negros que se limitavam a coisas sem alma, até aos povos do Oriente, amarelos, enfezados, ou aos índios peles-vermelhas, estranhos, incultos, longe do “concerto das nações polidas e iluminadas”, como se dizia em Setecentos.

Ser bonito ou feio depende, pois, em parte, da álea de se ter nascido num país e momento em que a nossa configuração externa corresponde ao “ideal” de beleza. Sempre me perguntei quem definia esses ideais e ainda hoje não encontro resposta totalmente satisfatória. Sei que este século viu nascer “profissões” como “influencers”, “bloggers”, “youtubers” e quejandos e muitos julgam que isto é novo. Puro erro. De facto, “nada de novo debaixo do sol”. Cada época teve quem marcasse tendências nas várias áreas sociais, com os instrumentos disponíveis à época. Um monge copista era um “influencer” da Idade Média, tal como um valente nobre conhecido por ser sanguinário com os inimigos.

Impressionou-me sempre a expressão “sociedade do risco”, de Ulrich Beck, muitos achando que o importante sociólogo tinha descoberto a pólvora. Nada disso. Aliás, uma leitura atenta da obra di-lo preto no branco: o risco sempre existiu – a par do terrível e ao mesmo tempo maravilhoso risco da existência –, simplesmente, em face das tecnologias actuais, o mando em mãos de doidos pode provocar a extinção do planeta. E ocorrem-me nomes de tolos, todos com penteados esquisitos.

Entre nós, à altura em que escrevo há um actor que luta pela vida, alegadamente por ter querido ter um corpo perfeito, escultural. Parece tê-lo conseguido, mas à custa de danos que se espera não serem irreparáveis para a sua vida ou saúde. Os distúrbios alimentares matam e há alguns anos atrás a indústria da moda soube lutar contra a morte de modelos para quem os espelhos devolviam sempre imagens gordas de seres escanzelados. Muitos até disseram que gostavam de estar com mulheres roliças e com formas, naquela forma machista de “ter onde agarrar”…

Tanto sofrimento, afinal, com o que cobre aquilo que somos. É verdade que a pele é o maior órgão do corpo humano e julgo que ninguém no mundo estará cem por cento satisfeito com a sua aparência física. Tal como ninguém é suficientemente rico, também se não é suficientemente magro ou musculado. Não quero ir para o terreno fácil de dizer que nos devemos assumir como somos. Porquê? Afinal, tenho-me por liberal em relação ao nosso corpo, nosso templo individual, desde que não interfira na esfera de liberdade de terceiros. Por isso votei a favor da última descriminalização do aborto e sou favorável à eutanásia de adultos, devidamente regulamentada, como aliás por pouco não foi aprovada há não muito tempo. Liberdade para fazer ou não desporto, para ter ou não hábitos saudáveis de vida, para beber e fumar. Sempre com o limite do respeito pela Lei e pelos outros.

Por isso, não julgo ninguém, sem que isto implique um relativismo axiológico acrítico, mas também não deixo que julguem os pneus que tenho depois dos 40 ou o corpo flácido e nada trabalhado que ostento. Não o aprecio particularmente e lembro-me do facto sobretudo na praia. Talvez por isso prefira o tempo mais frio. Mas não tenho vergonha dele, porventura por achar que ele não é a minha essência. Nem a dos outros. Se gosto de apreciar corpos que para mim são esbeltos? Claro que sim. E porque não luto para ter um assim? Porque na balança dos custos-benefícios, antes os pneus que os sofrimentos – para mim são – de dietas doidas, de substâncias duvidosas ou de tempos infindos nos ginásios.

Paradoxal? Claro. Mas o ser humano não o é por natureza? Apenas digo que se há várias formas de nos relacionarmos com o corpo, todas elas são aceitáveis e ninguém tem nada que ver com isso. Simplesmente, quando os desmandos de uma carne seca, enxuta e perfeita põem em causa a vida e a saúde – o que também não é nada de novo dos nossos dias –, então aí o bom senso (a qualidade mais mal distribuída no mundo), aconselha-nos a amarmo-nos por algo mais que uma bela pose no Instagram.

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