Um retrato da gestão dos recursos humanos da saúde

Sem a definição de um projeto de carreira, sem condições de trabalho adequadas, sem um modelo de retribuição que considere a senioridade e o desempenho, aproveitam a primeira oportunidade razoável para sair.

As consequências do êxodo de profissionais qualificados do Serviço Nacional de Saúde (SNS) são visíveis tendo claros reflexos estruturais na qualidade da prestação de cuidados. Infelizmente, fomo-nos habituando às notícias de insatisfação e contestação dos profissionais de saúde, da assimetria regional na distribuição de profissionais, de encerramento pontual de alguns serviços um pouco por todo o País e da deterioração dos tempos de espera por falta de especialistas em áreas específicas. Nem sempre pela sua inexistência, mas mais pela incapacidade de retenção/atração do SNS. Como, aliás, foi visível pelo resultado do recente concurso nacional para médicos especialistas.

Se o diagnóstico é por demais evidente, a raiz do problema e as soluções não são simples como muitas vezes se pretende fazer crer. Nem os profissionais são uns gananciosos ávidos de dinheiro, nem obrigar, por decreto, a sua dedicação irá resolver o problema, em particular quando o problema passa pela incapacidade de gestão nacional e local. 

A nível nacional impera o centralismo bacoco do Ministério das Finanças e uma cultura burocrática do Ministério da Saúde focada num processo opaco sujeito a pressões individuais ou corporativas e a decisões pouco estudadas e arbitrárias.

O planeamento da formação com base nas necessidades nacionais e regionais da população ou o desenvolvimento individual e coletivo dos profissionais pouco têm sido considerados. Basta ouvirmos o nível de argumentação sobre o número de médicos e enfermeiros, observarmos o jogo para a determinação da vagas de formação do internato médico, as irracionais autorizações para a contratação profissionais de saúde, ou as infelizes decisões para eliminar a carreira de auxiliar de ação médica ou a categoria para enfermeiro especialista.

A nível dos hospitais públicos, para não falar dos centros de saúde, os obsoletos serviços de pessoal continuam a processar salários e horas extra e a contratar de acordo com as autorizações arbitrárias do Secretário de Estado do Tesouro, sem qualquer capacidade crítica para além da legalidade. Sendo certo que se algum hospital solicitar a contratação de um técnico de Gestão de Recursos Humanos ou Psicologia terá sempre a mesma resposta: gaveta.

Por sua vez, os profissionais são remunerados pelo tempo e, para tal, picam o ponto. O desempenho pouco conta para a remuneração ou a quase impossível progressão. Sem a definição de um projeto de carreira, sem condições de trabalho adequadas, sem um modelo de retribuição que considere a senioridade e o desempenho, aproveitam a primeira oportunidade razoável para sair.

Por outro lado, num setor altamente regulado do ponto de vista das qualificações profissionais, qual será o sentimento de confiança na organização quando demasiadas vezes os critérios para o exercício de funções no órgão máximo de gestão, ao invés da formação ou experiência profissional, são os interesses locais e os graus de familiaridade partidária?

Não existindo respostas fáceis, o desafio passa pelo desenvolvimento de um fórum inclusivo de discussão que, inevitavelmente, tem que garantir a participação ativa dos profissionais de saúde, considerando as opiniões das gerações em formação, das instituições de saúde e da academia. Sem preconceitos todos os temas/ propostas devem estar em cima da mesa: skill-mix, papel das novas profissões, participação na gestão estratégica das instituições, formação ao longo da vida e revalidação de competências, modelos de incentivos de combate às assimetrias regionais (e.g. índices remuneratórios associados ao grau de periferia, vantagens na especialização).

Ao titular do Ministério da Saúde compete liderar esse processo, sendo obrigado a apresentar a visão do Governo para o SNS, e alinhar e arbitrar as diferentes posições em função dessa visão. Missão quase impossível, se escalpelizarmos os programas eleitorais, a interferência das finanças ou o nível atual de acrimónia entre os diferentes atores. Numa área em que as decisões demoram anos a terem impacto, liderança e coragem procuram-se.

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