A difícil tarefa de viajar sem tecnologia

Vinte e quatro pessoas de sete países aceitaram participar numa experiência científica para determinar como se sente alguém que é forçado a viajar sem ligação à Internet e equipamento tecnológico.

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PAULO PIMENTa

Acabou-se Agosto, as férias provavelmente já passaram e com elas perdeu-se mais uma oportunidade para desligar uns dias do mundo digital. Confesse – ou se não for de confissões, faça as contas em silêncio: quantas vezes não resistiu ao apelo do ecrã e acabou por dar mais uns minutos de atenção ao telemóvel ou tablet? Quantas vezes foi às redes sociais, sem que isso tenha tornado as férias mais interessantes?

Nesta época em que crianças de dois anos almoçam e jantam a olhar para o Youtube e os dispositivos móveis parecem extensões naturais das mãos de quem ainda mal sabe andar, ser adulto não significa resistir melhor às tentações do mundo digital. E neste espaço em que periodicamente abordamos soluções digitais que prometem acrescentar algo de útil e relevante à nossa vida, chegou a vez de tratar precisamente do contrário: o “detox digital” enquanto viajamos.

Esse foi o tema de investigação de uma equipa de cientistas de três universidades (East Anglia, Greenwich e Auckland) que acompanharam pessoas, e participaram eles mesmos, numa experiência que consistia em pura e simplesmente desligar do mundo tecnológico durante um período de viagem. A experiência deu origem a um artigo, publicado em meados de Agosto, no qual descrevem “a viagem emocional” por que passaram os participantes neste “detox digital em viagem”.

Os cientistas examinaram as emoções dos participantes antes do desligamento, depois do apagão e no fim após a religação ao mundo digital. E concluíram que no início houve ansiedade, frustração e sinais de perturbação devido à abstinência. Mais tarde, registaram “níveis crescentes de aceitação, alegria e até libertação”, lê-se no artigo publicado no Journal of Travel Research.

Com base na análise de 15 diários de viagem e 18 entrevistas, os autores reuniram os relatos de 24 participantes nesta experiência que alguns descrevem como uma “viagem numa montanha russa”. “Neste mundo constantemente ligado, as pessoas habituaram-se a ter acesso permanente a informação e diversos serviços prestados por todo o tipo de aplicações. Porém, muita gente demonstra níveis crescentes de cansaço de tantas conexões através da tecnologia e parece claro que há cada vez mais apetência por turismo livre do digital, daí que era importante e útil analisar a viagem emocional destes viajantes”, explica o investigador principal do grupo, Wenjie Cai [@wenjietourism], da Escola de Negócios da Universidade de Greenwich, em Inglaterra, citado pelo site Science Daily.

Portanto, tratava-se de fazer aquilo que muitos de nós, inconscientemente, até queremos fazer mas que, por razões que já nem sabemos discernir, não conseguimos. Temos a vida tão facilitada com a reserva de alojamento por uma app, que já nos esquecemos como é que tratávamos do assunto antes dos smartphones; confiamos tanto nos mapas online que chegamos a andar longos minutos perdidos num sítio antes de perguntar por direcções a alguém; e dependemos bastante da compra online de bilhetes, para vivermos na sensação de que temos um maior controlo sobre as nossas deslocações.

E o que sucedeu, segundo o relato dos participantes, não deverá ser novidade ou motivo de surpresa para ninguém: “esses não só interagiram mais com outros viajantes e locais durante as viagens sem tecnologia, como também passaram mais tempo com quem os acompanhava nessa jornada.”

Wenjie e os outros dois autores, Brad McKenna e Lena Waizenegger, não se limitaram a registar a variação das emoções a partir dos relatos. Recorreram ainda à teoria das oportunidades (affordance theory) para compreender perdas e ganhos de oportunidades tecnológicas durante esta experiência de turismo sem digital. Um exemplo fácil de citar é o uso do Google Maps, que permite obter instruções de navegação e que, uma vez fora das mãos, retirava aos participantes a capacidade de orientarem. O que, por sua vez, gerava ansiedade em alguns deles.

“Perceber o que suscita emoções positivas e negativas nos consumidores pode ajudar empresas e prestadores de serviços a melhorarem os seus produtos ou a afinar estratégias de marketing”, justifica McKenna, da Universidade de East Anglia.

Os 24 participantes, oriundos de sete países, viajaram por períodos diferentes, para 17 países e regiões distintos. Alguns sentiram mais a abstinência no início, mas depois perceberam que estiveram mais atentos ao ambiente que os rodeava e às pessoas. Além disso, dizem que o contacto com os locais permitiu reunir boas sugestões de visita a lugares, como praias, difíceis de encontrar na Internet ou nos guias online.

As férias vão começar, é favor desligar o telemóvel e esquecer a Internet

Sentimentos como ansiedade surgiram sobretudo em meio urbano, ao passo que em meios rurais ou na natureza predominou a síndrome da abstinência, porque não havia forma de dar notícias a amigos e familiares nem as “muletas” para matar tempo como redes sociais e jogos.

O pior, disseram alguns, foi quando chegou o momento de se religarem ao mundo digital. Houve quem se sentisse frustrado e assoberbado quando viram a quantidade de mensagens e contactos que perderam durante a experiência. Mas disseram que os aspectos positivos suplantaram os negativos e alguns planearam repetir o “detox digital”.

Ficou ainda evidente que quem viajava acompanhado sentiu mais facilidade em desligar do que os turistas solitários. Os primeiros relataram maior confiança, ao passo que os segundos sentiram-se mais vulneráveis sem o “apoio tecnológico” face a diferenças culturais como, por exemplo, um idioma que não se domina.

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