O “Brexit” e a crise existencial britânica

O “Brexit” mostra como pulsões populistas e nacionalistas podem colocar em crise o funcionamento regular da arquitetura institucional de uma democracia pluralista, com larga tradição, como a britânica.

O Parlamento é o cerne da democracia britânica, que assenta na soberania parlamentar. Afrontar o Parlamento já levou a uma guerra civil e custou a vida ao rei Carlos I, no séc. XVII. E é o Parlamento que tem estado na linha da frente a defender que o Reino Unido não pode sair da União Europeia sem acordo. O Parlamento britânico, um ex libris da democracia parlamentar.

Foi este mesmo Parlamento britânico que acabou de ser encerrado, a pedido do primeiro-ministro e brexiteer Boris Johnson. Se o Parlamento se coloca à frente dos desígnios de Boris Johnson e dos brexiteers, então o Parlamento tem de ser afastado. Não para sempre. Durante cinco semanas. Mas afastado tempo suficiente para dificultar a vida aos parlamentares que queiram impedir a saída sem acordo por via legislativa. Ainda assim, fala-se entre deputados da oposição e deputados conservadores não-alinhados sobre apresentação de uma moção para fazer cair o Governo. Pode bem haver novas eleições. Eleições em que o tema poderá ser o povo contra o Parlamento, num exercício de ataque à própria noção de democracia parlamentar.

Depois de um referendo, em 2016, em que ninguém prometeu sair da União Europeia sem um acordo, em que Brexiteers de diversas estirpes se dedicaram a anunciar que seria tudo muito fácil e simples, estamos, em 2019, perante a possibilidade de uma saída sem acordo no dia 31 de outubro. E os mesmos que diziam que iria ser tudo fácil, que não se iria sair sem acordo, agora vêm dizer que a saída sem acordo é a forma de respeitar o resultado do referendo. Depois de um referendo em que se prometeu que o objetivo era “take back control”, para defender as instituições britânicas, são os próprios Brexiteers a colocar em causa o Parlamento (o cerne da democracia britânica, assente na soberania parlamentar) e os tribunais (que chegaram a ser apelidados de “inimigos do povo”). Foi também reportado que Boris Johnson pondera propor a ascensão à Câmara dos Lordes (não eleita) um conjunto de aliados políticos que empurrem essa Câmara para o lado brexiteer, ao mesmo tempo que reclama da falta de eleições para cargos europeus.

O “Brexit” colocou em cima da mesa, novamente, a independência da Escócia. Os nacionalistas escoceses aproveitaram a ocasião para relançar a questão, depois do referendo de 2014 ter sido perdido pelos nacionalistas. O objetivo seria acabar com o Reino Unido e pedir a admissão da Escócia (que votou maioritariamente pela permanência) na União Europeia. Curiosamente (ou talvez não), os argumentos que já vi Brexiteers usarem para a permanência da Escócia no Reino Unido são muito parecidos com os argumentos utilizados pelos Remainers para a permanência do Reino Unido na União Europeia. Mas outros Brexiteers (ingleses) há que estariam dispostos a assistir ao colapso do Reino Unido só para saírem da União Europeia. Ao menos, são consistentes. Estas divergências mostram bem, também, os conflitos identitários grupais subjacentes ao “Brexit”, e a forma como o povo, na verdade, não é um ente amorfo e homogéneo. A gestão pacífica destes potenciais conflitos (e, numa perspetiva liberal, a proteção do indivíduo) são a razão de ser para as instituições políticas. Conflitos institucionais como os que estão a ocorrer no Reino Unido testam a resistência das próprias instituições, colocando em causa a arquitetura constitucional e institucional vigente.

Na Irlanda do Norte, o “Brexit” veio levantar o espectro da guerra civil, do regresso da violência sectária, e do terrorismo e dos grupos paramilitares. A Irish backstop, que tanto irrita os brexiteers, foi um compromisso para tentar salvaguardar o acordo de paz na Irlanda do Norte, colocado em crise pelo “Brexit” e pela possibilidade de existir novamente uma fronteira “dura” entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. De notar que em resposta a estes problemas, os Brexiteers, em alternativa à backstop, não propõem nada de concreto. De notar ainda que, desde 2017, a assembleia regional (que funciona numa lógica de partilha de poder entre nacionalistas e unionistas) se encontra dissolvida, após um escândalo de corrupção, e quem “governa” é a função pública. Pode haver a tentação de ser novamente imposto governo direto a partir de Londres, e isso também serve para inflamar tensões. Tudo em nome do “Brexit”.

O Reino Unido vive hoje uma crise existencial. O processo do “Brexit” colocou o sistema político britânico a ferro e fogo. Em causa estão confrontos entre democracia direta (o referendo) e democracia parlamentar (o Parlamento e a maioria parlamentar), entre o Parlamento e o Governo e entre Westminster e as assembleias e os governos regionais. Os tribunais vêm sendo chamados a decidir questões de natureza constitucional que há uns anos ninguém pensaria que se sequer fossem colocadas, quanto mais discutidas em tribunal. Os vários partidos estão divididos, com potencial para existir um realinhamento partidário de cariz estrutural. Esta divisão reflete tensões dentro da própria população britânica que, aconteça o que acontecer, não desaparecerão tão cedo.

O “Brexit” mostra como pulsões populistas e nacionalistas podem (pelo menos ajudar a) colocar em crise o funcionamento regular da arquitetura institucional de uma democracia pluralista, com larga tradição, como a britânica. Mostra bem como não devemos tomar por garantidas as instituições que protegem a nossa liberdade individual e coletiva, e que para o bom funcionamento das instituições não basta tradição. É preciso, a cada momento, que haja alguém disposto a lutar por essas instituições, a preservar o seu bom funcionamento, a respeitar normas éticas, e que essas instituições sejam consideradas, efetivamente, um mínimo denominador comum para a convivência em comunidade.

O Reino Unido pode bem continuar a existir depois desta crise. Pode até nem se desagregar. Mas suspeito que as feridas criadas pelo “Brexit” tardarão a sarar. E não será o mesmo Reino Unido.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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