Presidente do júri do Festival de Veneza “incomodada” com presença de Polanski na competição

Lucrecia Martel não assistirá à projecção de gala do novo filme do cineasta que em 1978 foi condenado por abuso de uma menor: “Represento muitas mulheres que na Argentina lutam por questões como esta, e não quereria levantar-me para o aplaudir”, disse na conferência de imprensa, em que também defendeu quotas de género no festival. Horas mais tarde, sentiu-se na necessidade de clarificar as suas palavras.

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Lucrecia Martel, esta quarta-feira em Veneza CLAUDIO ONORATI/epa

Não é unânime no Lido o entusiasmo com que o director artístico do Festival de Veneza, Alberto Barbera, acolheu o novo filme de Roman Polanski, J'accuse, na competição internacional da 76.ª edição que esta quarta-feira começa. Na conferência de imprensa em que o júri presidido por Lucrecia Martel se apresentou à imprensa, horas antes da abertura oficial do festival, o elefante que já se sabia estar no meio da sala mexeu-se, e bastante ruidosamente: “Não vou assistir à projecção de gala do senhor Polanski porque represento muitas mulheres que na Argentina lutam por questões como esta e não quereria levantar-me para o aplaudir”, declarou a cineasta argentina, assumindo que, ao contrário de Barbera, não separa o homem da obra.

Já à noite, e perante a repercussão das suas palavras, Martel viria a emitir um comunicado oficial clarificando a sua posição: “A avaliar por alguns relatos feitos após a conferência de imprensa de hoje [quarta-feira], creio que as minhas palavras foram profundamente mal interpretadas. Uma vez que não separo a obra do autor e reconheço imensa humanidade em anteriores filmes de Polanski, não me oponho à presença do filme na competição. Não tenho qualquer preconceito contra ele e certamente olharei para este filme como para qualquer outro da competição. Se tivesse algum preconceito, ter-me-ia demitido das funções de presidente do júri.”

A decisão de incluir na competição o filme do cineasta polaco que em 1978 se declarou culpado do abuso sexual da então adolescente Samantha Geimer foi recebida com crispação assim que Alberto Barbera anunciou a selecção oficial desta edição do festival: a direcção foi acusada de abrir as portas da competição a “um violador”, ao mesmo tempo que as fechava às mulheres, esmagadoramente minoritárias no concurso principal de 2019 (apenas a saudita Haifaa Al-Mansour, com The Perfect Candidate, e a australiana Shannon Murphy, com Babyteeth, concorrem ao Leão de Ouro). Mas agora é nada menos do que a presidente do júri a verbalizar o seu desconforto, afastando implicitamente o filme de Polanski do palmarés que a 7 de Setembro há-de ser anunciado.

Se para o director do festival a decisão de aceitar J'accuse a concurso foi absolutamente natural ("A discussão demorou 30 segundos. Parece-me um grande final, o entusiasmo final [entre os membros do júri de selecção] era evidente, nunca houve a mínima dúvida. É o novo filme de um dos grandes mestres do cinema europeu, um grande filme sobre temas de enorme actualidade”, disse Barbera em entrevista ao PÚBLICO), já para Lucrecia Martel “a presença de Polanski é muito incómoda”, confessou esta manhã, citada pelo El País, quando questionada acerca da sua capacidade para avaliar o filme do cineasta sem se deixar influenciar pelo que pensa dos seus comportamentos passados.

“Sei que a vítima deu este caso por encerrado, considerando que o senhor Polanski cumpriu com o que ela e a sua família lhe pediram. Não posso pôr-me acima das decisões judiciais, mas posso, sim, solidarizar-me com a vítima”, acrescentou a realizadora, ressalvando porém que a inclusão de J'accuse no festival lhe parece “acertada”, porque é importante “que haja diálogo e se debatam estes assuntos”. Reiterando que não felicitará o autor, a presidente do júri fez questão de saudar Veneza por possibilitar uma conversa, cita site IndieWire: “A história da arte está cheia de artistas que cometeram crimes de naturezas diferentes, contudo continuámos a admirar as suas obras. O mesmo é válido para Polanski que, na minha opinião, é um dos últimos mestres do cinema europeu no activo.”

Rapidamente a conferência de abertura do festival se transformou num debate, relata o El País. Não só em torno de Polanski (que, avançou entretanto o Le Figaro, não estará presente no Lido para assistir à estreia mundial do seu filme baseado no célebre “caso Dreyfus”, por considerar que o acordo de extradição entre a Itália e os Estados Unidos o põe em risco), mas também em torno da presença minoritária das mulheres na selecção deste ano. A auto-proclamada aversão a quotas do director Alberto Barbera também enfrentou os argumentos contrários de Lucrecia Martel: “[A imposição de quotas] far-me-ia feliz? Não. Mas não sei de que outra maneira podemos forçar esta indústria a pensar de outra maneira. E a olhar para os filmes realizados por mulheres.” 

Barbera, que se diz “contra esta maneira de pensar, desde logo porque é ofensiva para as mulheres”, reconheceu que num futuro ideal os festivais terão programas paritários “não só para aplacar as polémicas, mas também porque seria uma conquista e mais justo para todos”. Mas lembrou que apenas 23% dos 1850 filmes que se apresentaram a Veneza foram realizados por mulheres, e que até viu alguns deles mais do que uma vez, na eventualidade de “num segundo visionamento se mostrarem mais convincentes”. Resultado: “Poderíamos ter incluído mais umas, mas não teria feito muita diferença. Teriam sido quatro, como em Cannes.”

Há um ano, de resto, o festival foi directamente visado por um protesto concertado de várias associações de mulheres do sector audiovisual, que, numa carta aberta, exigiram maior representatividade em Veneza. “Aguardámos pacientemente por uma mudança. Agora temos de agir”, concluía a missiva divulgada no site da Rede Europeia das Mulheres do Audiovisual (EWA, sigla em inglês), uma das entidades subscritoras. As associações recordavam então que em 2017 apenas um filme realizado por uma mulher tinha chegado à selecção oficial, Jia nian hua, de Vivan Qu, e que a situação se repetia em 2018, com The Nightingale, de Jennifer Kent. 

A imposição de quotas de género, dizia esta semana o director do festival ao PÚBLICO, “é uma forma de intimidação muito forte”. Esta manhã, a “intimidação” estava ali ao lado, e teve a última palavra: “Pensemos ao contrário. Decorridos 76 anos de festival, durante os próximos dois poderíamos fazer a experiência de ter uma selecção igualitária e ver o que acontece, se é certo que baixa a qualidade dos filmes ou gera um movimento diferente na indústria”, desafiou Lucrecia Martel.

Notícia actualizada às 11h59 de 29/08 para incluir nova informação sobre a presença de Polanski em Veneza e novas declarações de Lucrecia Martel

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