Eu, ela e o SEF

Há estrangeiros que não vêem os seus filhos nascer e crescer, ou que não podem despedir-se dos pais a morrer, porque estão retidos em Portugal à espera de um agendamento do SEF.

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“Quando percebes que queres passar o resto da tua vida com alguém, queres que o resto da tua vida comece o mais rapidamente possível”, dizia o Billy Crystal em When Harry Met Sally. Mas e se o Estado decidir que o resto das vossas vidas vai ter de esperar vários meses para começar?

Conheci a minha “Sally” em Lisboa. Ela era uma turista norte-americana. Eu fui o prestável nativo que lhe deu umas recomendações de restaurantes. Começámos aí um namoro transatlântico — umas semanas deste lado do mar, outras do lado de lá — ao ritmo do que o trabalho e os vistos de turista nos permitiam. Um amigo meu dizia que era a relação perfeita, que assim estávamos sempre cheios de saudades e que nunca nos fartávamos um do outro. Mas eu só me lembrava do Chega de Saudade do Vinicius e então pedi-a em casamento.

Decidimos que o tal resto das nossas vidas iria começar em Portugal. Ela tratou das suas coisas nos Estados Unidos (recolher os documentos necessários para a autorização de residência, vender o carro, fazer jantares de despedida) e atravessou o oceano de vez.

Já casados, depois da lua-de-mel, o plano era ir ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para tratar da autorização de residência da minha mulher e pôr termo ao namoro a prestações. Sabíamos que ia ser um processo burocrático moroso, mas isto ainda foi antes das notícias dos longos atrasos no SEF se terem tornado normais, pelo que não estávamos preparados para ouvir que só teríamos vaga para atendimento dali a oito meses.

O visto da minha mulher acabaria dali a poucas semanas, deixando-a em situação irregular. E os documentos que já tínhamos recolhido nos Estados Unidos para entregar no SEF iriam perder a validade até à data de atendimento. Por telefone, uma funcionária do SEF explicou-nos que ela podia permanecer em Portugal numa espécie de limbo legal, mas que uma vez ultrapassada a data limite do visto não deveria sair do país, pois arriscava não ser autorizada a reentrar.

Ora, tal era impossível. Não só a minha mulher tinha de poder ir aos EUA recolher novos documentos para apresentar no SEF, como tinha de viajar por motivos profissionais e de poder visitar os pais, que enfrentavam graves problemas de saúde.

A solução foi adiar o início da nossa vida a dois por mais de meio ano, regressando ela aos EUA antes do fim do visto, e continuar a namorar a prestações, apesar de já estarmos casados. Bem como continuar a gastar milhares de euros em bilhetes de avião e em habitação em dois países.

À saudade e aos custos somaram-se o medo e a ansiedade. Ao conhecer histórias de outras pessoas em situações semelhantes, soubemos do risco sério de chegar ao SEF dali a oito meses e faltar-nos um papel (porque em Portugal falta sempre um papel), tendo de reiniciar todo o processo e esperar mais tempo. Por esse receio, e ao longo desses meses, tentámos esclarecer várias dúvidas junto do SEF (que documentos apresentar, quais traduzir, que traduções teriam de ser certificadas, se numa embaixada ou num notário…).

Nunca obtivemos resposta. O site do SEF disponível na altura apenas nos apresentava um labirinto de legalês incompreensível. Por e-mail, respondiam-nos com copy-paste do site. Por telefone era impossível chegar à fala com um funcionário – ou ficávamos em espera mais de meia-hora, até desistirmos, ou a linha estava simplesmente desligada, como aconteceu durante todas as nossas tentativas de contacto durante o Verão de 2018.

Perante este muro erguido pelo SEF, restava-nos a informação partilhada por outros imigrantes nas redes sociais. Todos extremamente prestáveis, mas cada um com a sua versão dos factos — porque uma coisa é o que está na lei, outra coisa é a experiência que cada utente tem conforme o funcionário que lhe calha.

A poucas semanas do agendamento, e ainda cheios de dúvidas, acabámos por procurar ajuda legal. Entre advogados que nos queriam cobrar mais de 700 euros à cabeça antes de responder a um mero e-mail, e outros que se desinteressavam assim que percebiam que não estava em causa um visto gold, lá nos foi recomendada uma advogada que nos explicou tudo o que precisávamos. Pagámos 100 euros por uma informação que o Estado tinha o dever de prestar, mas que nos escondeu atrás de um serviço ineficiente. 

Chegados ao dia do atendimento, tudo correu bem, fora o facto de vários dos documentos que apresentámos (alguns dos quais traduzidos e apostilados, que nos custaram centenas de euros) não serem afinal necessários, ao contrário do que o SEF tinha sugerido inicialmente. Mas antes pecar por excesso. Semanas depois, lá tínhamos o cartão de residente na caixa do correio. Nove meses depois do casamento, a minha mulher estava autorizada a viver comigo.

A nossa história acaba bem e não é um caso grave quando comparado com os que temos conhecido através da imprensa, das redes sociais e de associações de imigrantes. Há estrangeiros que não vêem os seus filhos nascer e crescer, ou que não podem despedir-se dos pais a morrer, porque estão retidos em Portugal à espera de um agendamento do SEF. Sem autorização de residência, há milhares de pessoas empurradas para vazios legais pelo próprio Estado, ficando-lhes dificultada a persecução de oportunidades de negócio e de projectos de vida. E há quem acabe por desistir de Portugal, como tem sido o caso de inúmeros refugiados que nos últimos anos se viram impossibilitados de trazer as suas famílias, entre os atrasos do SEF e a exigência cega de documentos difíceis de obter em nações em guerra, optando por seguir para outros países europeus.

O que se passa no SEF não pode ser visto apenas como mais um problema de ineficiência ou má gestão pública. Mais do que isso, é um gravíssimo problema de direitos humanos para milhares de famílias em que o infractor é o Estado português. E que deveria envergonhar todos os partidos que têm e que tiveram responsabilidades governativas, pois se é o actual executivo que celebra défices orçamentais em mínimos históricos ao mesmo tempo que mantém serviços como o SEF sem funcionários nem estrutura suficiente para cumprir as suas obrigações, por outro lado foram os governos anteriores que promoveram a degradação do serviço através do desinvestimento nos seus recursos humanos.

Quando nos escandalizamos com os muros erguidos noutras nações (a começar pelos Estados Unidos), era bom que pensássemos também nas barreiras invisíveis colocadas a quem escolheu viver cá. Um país que se declara aberto ao mundo nas suas Websummits, que se oferece para receber refugiados, e cuja viabilidade económica e demográfica depende em parte da imigração, tem de resolver com urgência o problema do SEF. A solução não pode continuar em fila de espera.

PS: Entretanto mudámos de casa. Por lei, temos de comunicar a nova morada no prazo de 60 dias. Telefonámos de imediato ao SEF, que nos agendou atendimento para Novembro, numa capital de distrito a 200 quilómetros de distância. E estamos cheios de sorte, já que o SEF acabou de suspender novas marcações até ao final do ano.

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