Memorabilia fascista não é memorável

Qualquer respeito pela ditadura é um atentado à democracia. O fascismo e a tirania não se repetem nunca da mesma forma, adaptam-se aos tempos. Qual é a lembrança do Estado Novo que quer este país dar ao seu povo?

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Adriano Miranda

Há uma comuna italiana onde o fascismo, todos os anos, caminha pelas ruas. Veste a pele — e a roupa — dos seus comuns representantes, numa peregrinação doentia de homenagem a Benito Mussolini. Numa interessante peça do The Guardian, publicada em Julho, o jornal britânico conversou com um casal fascista que, sem excepção, visitava o túmulo do antigo ditador pela altura do seu aniversário. Predappio, onde nasceu a principal figura do nacionalismo italiano, abre anualmente o pequeno mausoléu, onde os seguidores do Duce depositam flores e, embora a venda de memorabilia nazi tenha sido proibida em 2009, uma família neofascista ainda pode adquirir um busto de Mussolini para levar na viagem de regresso. No ano passado noticiou-se a abertura do Museu do Fascismo, como forma de o combater; este ano, o novo edil já declarou querer abrir a cripta do ditador de forma permanente, para renovar o fluxo turístico e, por consequência, a economia local. 

Santa Comba Dão parece ir ao seu encontro com o centro interpretativo do Estado Novo. Acho por bem não o denominarem, pelo menos directamente, “Museu Salazar” — também se mudou o nome à ponte. Numa década marcada pela ascensão de múltiplos governos de extrema-direita, é importante reconhecer o fascismo enquanto força política capaz de assimilar seguidores. Portugal não é excepção e, ainda com o baixo número de eleitores nos partidos extremistas, os murmúrios autoritários e conservadores vão borbulhando nas redes sociais. Bastará ver os comentários a este artigo. 

Desde já, admito: não pretendo visitar Predappio e, se for ao Vimeiro, é para reforçar a minha opinião perante o nacionalismo salazarista. E não, não sou contra Auschwitz, Birkenau, edifícios eles tão trágicos quanto históricos. Nada de memorável teve lugar na Escola-Cantina Salazar, muito menos na casa vizinha — e nisso incluo o nascimento do homem que a nomeou. A construção deste centro interpretativo pode ter sido uma decisão leviana (ainda que o projecto há muito esteja na mesa e a população o tenha contrariado), mas as justificações para a sua construção não podem ser o turismo, não podem ser a economia, não podem ser o orgulho nacionalista, que qualquer respeito pela ditadura é um atentado à democracia.

Podem, sim, ser a Cultura ou a História (não é por elas que deve um museu funcionar?), e é aí que se devem questionar os moldes e a supervisão e direcção científica (ainda não apresentada) do mesmo. A perspectiva é tudo — e parte, em primeiro lugar, de quem expõe, do que se expõe, de quem vê, ouve, escuta — e é de atentar que, no apogeu de regimes extremistas, na década de Trump e Bolsonaro, nunca as mais jovens gerações estiveram tão frente-a-frente com estas lutas (ou aquietações) políticas. 

A opinião dos cidadãos portugueses divide-se, numa luta tácita entre o recordar a História e o traçar a História. Petições foram feitas, galhardetes teledisparados, cartas assinadas. A tortura, a fome e a censura deixam sempre marcas, impossíveis de ser limadas. E a ingénua tentativa de as ignorar também. Qual a importância deste projecto? Se combater a ignorância sobre o regime salazarista, imensa. Se for somente um mausoléu de branqueamento e saudosismo fascista, absolutamente nenhuma. 

Repito: qualquer respeito pela ditadura é um atentado à democracia. O fascismo e a tirania não se repetem nunca da mesma forma, adaptam-se aos tempos. Lembrem-se de Predappio ao invés de Auschwitz. Qual é a lembrança do Estado Novo que quer este país dar ao seu povo? 

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