Em Hong Kong houve protestos sem cair na armadilha da violência

Concentração pacífica no Parque Vitória teve mais de 1,7 milhões de participantes, segundo a Frente Cívica de Direitos Humanos. Apesar de alguns deslizes, os manifestantes não cederam à violência e Pequim viu a sua narrativa de serem “radicais e violentos” enfraquecer.

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Este graffitti apareceu em vários locais Kim Hong-Ji/REUTERS
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Parte do percurso da manifestação JEROME FAVRE/EPA
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A polícia antimotim estava alerta nas ruas ROMAN PILIPEY/EPA

Não cometer erros nem ceder à violência, não cair em armadilhas. É este o grande desafio do movimento pró-democracia em Hong Kong, quando a China está a concentrar e a treinar tropas em Shenzhen, na fronteira com a antiga colónia britânica. E, mesmo com alguns deslizes, os manifestantes conseguiram-no. Teme-se mais do que nunca uma intervenção militar chinesa e toda a violência poderá ser usada para a legitimar.

“[A China] Tem dito a toda a gente que somos amotinados. A marcha de hoje [ontem] é para mostrar a todos que não o somos”, disse Chris, manifestante de 23 anos, à Reuters. “Não significa que vamos deixar de lutar. Faremos tudo o que for necessário para vencer, mas hoje fazemos uma pausa, e depois reavaliamos”.

Centenas de milhares de pessoas juntaram-se ontem no Parque Vitória, no centro de Hong Kong, na 11ª semana de protestos, sob chuvadas intensas, para protestar contra o governo de Carrie Lam e a crescente influência de Pequim. Foram várias as críticas à repressão da polícia e, entre palavras de ordem, ouviu-se um manifestante gritar: “Hoje é uma marcha pacífica! Não caiam na armadilha! O mundo está a observar-nos!”.

Impedida pelo executivo de Lam de marchar pela cidade, a Frente Cívica de Direitos Humanos (FCDH) organizou a concentração para promover protestos maciços pacíficos, como fez em meados de Junho, ao juntar cerca de dois milhões de pessoas nas ruas de Hong Kong – quase um terço da população da região administrativa especial sob o princípio “um país, dois sistemas”. “Libertem Hong Kong” e “Democracia já”, lia-se em cartazes.

O protesto de ontem teve mais de 1,7 milhões de pessoas e foi verdadeiramente pacífico, segundo Jimmy Sham Tsz-kit, da FCDH. “Houve um grande número de pessoas da Causeway Bay à Central que não conseguimos contar, pelo que achamos que o número final será muito superior aos 1,7 milhões”, disse o activista ao South China Morning Post. Números que contrastam largamente com os apresentados pela polícia: 128 mil pessoas, e isto no ponto máximo da afluência da concentração.

A concentração foi capaz de desarmar um dos argumentos do Governo e de Pequim, o da violência ser parte integrante dos protestos. No entanto, o cair da noite trazia a hipótese de a violência regressar – a polícia costuma reprimir durante a noite. E as imagens mostram que estiveram bem mais de 128 mil pessoas. O governo, esse, voltou a apostar na postura de sempre: “lamentou” que o protesto tenha sido iniciativa de uma organização “que nas palavras de ordem tem como alvo a polícia” e reafirmou o apoio aos agentes, acusando os manifestantes de serem “radicais e violentos”.

Uma fraqueza e força do movimento é precisamente não ter uma liderança. Por um lado, as autoridades vêem-se incapazes de a decapitar, mas, por outro, também não há quem defina uma estratégia coordenada, seja violenta ou pacifista. Em reacção à violência da polícia, há manifestantes que adoptam uma abordagem olho por olho e entram em confrontos com a polícia. Caem, sem o quererem, na armadilha de Pequim - a polícia manteve-se ao longo deste domingo sempre à margem, limitando-se a proteger com um grande dispositivo o gabinete de ligação chinês, cercado no passado pelos manifestantes

Bloqueado durante vários dias, o aeroporto de Hong Kong foi palco de um percalço na guerra de comunicação com Pequim. Os manifestantes ficaram sob fogo cerrado depois de um jornalista de um tablóide do Partido Comunista Chinês ter sido algemado a um carrinho de aeroporto. Essas imagens percorreram o mundo e Pequim tentou transformou-o num “verdadeiro herói”, numa arma de propaganda, para denunciar a violência dos protestos – já os chamou “terroristas”. E, assim, legitimar uma intervenção.

Os homens suspeitos

Há manifestantes que não receiam uma intervenção chinesa e garantem tratar-se de “ameaças vazias”, disse um participante na concentração à CNN. “Não me preocupa por sabermos que se a força militar da China vier para Hong Kong, toda a ordem social será destruída. Não me parece que o governo esteja preparado para o ver acontecer”, disse outra manifestante ao canal norte-americano.

Não é raro agentes da autoridade infiltrarem-se em manifestações para identificarem activistas e até semearem desacatos. É esse o medo dos manifestantes e sempre que vêem alguém estranho desconfiam de imediato. À semelhança da situação no aeroporto, um homem foi visto na marcha de ontem a tirar fotos aos rostos dos manifestantes, sendo interpelado e agredido. Aos jornalistas, o homem disse ser um analista financeiro de Xangai que veio sozinho a Hong Kong para “dar uma vista de olhos no que está a acontecer”, segundo o South China Morning Post.

Em frente ao edifício do governo, voltou a acontecer um caso semelhante agora com um homem vestido de branco – os atacantes do metro estavam de branco. Ficou a sangrar da cabeça e abandonou o local.

Terminada a concentração, os manifestantes marcharam, em desafio, de Causeway Bay até à Central. No final, uns acabaram por desmobilizar e ir para casa, enquanto outros, jovens munidos de máscaras de gás, dirigiram-se para o parlamento e sede do governo. Quando viram movimentações da polícia no interior do edifício, apontaram lasers e usaram catapultas para disparar objectos contra o edifício, com as autoridades a pedirem-lhes para abandonarem o local. Alguns manifestantes também o fizeram, sem sucesso. Contudo, à medida que a noite avançava, os manifestantes começaram a desmobilizar.

A violência não regressou às ruas de Hong Kong, mesmo quando a tensão o indicava. Os manifestantes não caíram na armadilha, pelo menos desta vez.

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