Nos socalcos do Centro de Alto Rendimento do Pocinho crescem atletas

No Centro de Alto Rendimento (CAR) do Pocinho, há momentos — e espaços — para tudo. A luz pontua as finalidades das divisões e os corredores fazem acontecer algo. O edifício, projectado por Álvaro Fernandes Andrade, venceu o Prémio Arquitectura do Douro em 2017 e recebe, todos os anos, atletas de desportos náuticos de vários países.

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Teresa Pacheco Miranda
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Quando se chega ao Pocinho, logo às portas de Vila Nova de Foz Côa, há uma calma que ajuda a interpretar a paisagem. O quadro é mais do que conhecido: predomina o verde, vivo, que encontra nos degraus naturais da paisagem uma escadaria com vista para o Douro, ali a dividir os distritos de Bragança e da Guarda. Todos os anos, entre os meses de Outubro e Maio, há pequenas canoas a deslizar pelo plano de água que banha o Pocinho — “um dos melhores do mundo”.

É que ali remam atletas de alta competição vindos de vários pontos do globo. O Douro, muito mais do que um postal, acolhe-os num conjunto de socalcos brancos, ligados, onde não cresce a vinha, mas antes os atletas de hoje e amanhã. É o Centro de Alto Rendimento (CAR) do Pocinho, projectado pelo arquitecto Álvaro Fernandes Andrade, 47 anos, vencedor em 2017 do Prémio Arquitectura do Douro, que ainda está a receber candidaturas para a edição deste ano. Por ali, em estágio, já passou o Kingston Rowing Club, um dos clubes de remo mais antigos do mundo, do Reino Unido, ou o Berliner Ruder Club, da Alemanha.

As formas irregulares podem demarcar-se dos restantes edifícios da aldeia, mas, naquele terreno “com declive acentuado”, comunicam com o que já ali existe há “muitos anos”. O CAR do Pocinho aproveita o espaço e não desestabiliza a paisagem: ainda assim, são “oito mil metros quadrados” que “poderão vir a ser 11 mil”. Nessas medidas há história, estudo e muita observação por detrás do projecto. Por isso, é possível identificar características durienses ou fazer analogias com a cultura da região Património Mundial da UNESCO.

O edifício lança-se terreno acima em três grandes momentos — cada um deles com a sua função. A volumetria irregular que o distingue “permite fragmentar corpos que seriam muito extensos e rectilíneos na paisagem”, explica Fernandes Andrade. Nada no CAR é acidental, ainda que o terreno onde repousa seja acidentado.

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Álvaro Fernandes Andrade venceu o Prémio Arquitectura do Douro em 2017 Teresa Pacheco Miranda

É uma “aproximação por contraste”, já que o CAR do Pocinho não passa (nem seria essa a intenção) despercebido, mas existiu “uma leitura ao sítio, com respeito e diluição”. Por isso, em vez de “uma torre com 20 ou 30 andares”, que resolveria “questões de acessibilidade”, há socalcos. E, em cada um deles, os atletas que ocupam o edifício para treinar naquela aldeia podem aprimorar-se — seja a nível social, mental e/ou físico. É mesmo esta a ordem de ideias que se fixa e que se quer reflectir na estada, aproveitando-se, ao mesmo tempo, as características da região. 

Há uma leitura “ancestral” que o arquitecto portuense propõe como introdutória para se ler a obra: “No caminho de comboio ou de barco [para o Pocinho], a partir da Régua, começa a ser claro que o socalco é cliché e banalidade, é a marca registada mais forte”, inicia. Numa “paisagem muito sensível e cuidada”, Fernandes Andrade diz ter percebido algo que, mais tarde, se viria a reflectir no processo de concepção do CAR: “Os grandes volumes que se constroem no Douro, as quintas, são grandes aglomerados construídos ao longo das curvas de nível, para evitar deslocações de grande desvio, mas são muito brancos, talvez até por questões climáticas.” E a cor daqueles blocos interligados reflecte uma das preocupações do arquitecto: a ideia da sustentabilidade estar presente, “mas sem parecer que está lá”. Para além de o branco “ser muito eficaz em climas muito quentes”, a captação de luz e calor, com “alguma gestão da climatização do ar”, permite que o custo energético “seja muito baixo”.

O jogo de luz segue a rotina do atleta

Depois de mais de um dia de treino, descanso é palavra de ordem. Mas, aos atletas, espera-lhes uma subida, que vai atravessando duas das grandes áreas do CAR. Chegando à entrada principal, há uma parede de xisto castanho (proveniente da zona) que se prolonga de fora para o interior. Se, num primeiro momento, o edifício parece estar privado de aberturas, dentro tem-se outra percepção: há luz, muita, que ajuda a afagar o espírito (e o corpo) depois do desgaste físico. Seguindo a ideia de Fernandes Andrade, o atleta repousará, primeiro, na zona social, “situada na cota mais alta”. Poderá dirigir-se para o refeitório, onde uma “parede” de vidro, quase como observatório de paisagem, convida ao descanso. Há uma esplanada, claro. Dali para os pontos mais interiores da “zona social”, a luz vai diminuindo — e isso tem um motivo.

Teresa Pacheco Miranda
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A “gradação de luz” ali existente acompanha os diferentes ritmos da socialização: é a flexibilização do espaço. Depois do refeitório, “uma espécie de lounge” para se ler, com menos luz, mas ainda assim o quanto baste. Segue-se-lhe uma sala de computadores que transita para a biblioteca, o sítio primordial para o estudo, onde uma clarabóia pretende iluminar a massa cinzenta. É mais fechada, mais escura, e por isso “intimista”, sem paisagem. “Há cada vez mais mestrados na área do desporto e estes atletas, muitas vezes, são jovens universitários”, refere. A preocupação com quem usufrui do espaço deve ser marca da arquitectura: a única forma de a experimentar “é estar ou vivendo nela”.

Por esse motivo, nos 84 quartos existe uma secretária para que, ali, os atletas possam estudar sem distracções. Cada linha de quartos está semienterrada, com clarabóias “a sul”, que deixam entrar o sol, uma vez que “a implantação do edifício é virada a norte”. Ficam na segunda área, que se multiplica escadas abaixo em diferentes corredores, quase como um hotel. No CAR, cada corredor tem uma forma diferente e ao fim de cada um há luz, mais uma vez, e uma kitchnet. Cada inflexão irregular que se vê de fora permite, por dentro, a ligação entre as diferentes secções de quartos.

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Individual versus colectivo

A cada socalco dos dormitórios existe, ao fundo, uma copa: assim, reforça-se a dualidade entre a privacidade do atleta, que fica no seu quarto, e a possibilidade de conviver com outros. “E de convidar alguém para ver as estrelas na clarabóia dos quartos”, brinca Fernandes Andrade. “Estas ligações permitem articular cotas e há uma vontade de tornar esta experiência memorizável”, evitando os habituais confusos corredores de hotel. E em cada um, bem como nos quartos, há equipamento para transporte de atletas com limitações motoras, permitindo a fluidez “num espaço muito complexo”.

O dia pode muito bem terminar naquela zona, para depois se iniciar outro na última cota, a do ginásio, piscina e balneários, onde também se inserem zonas de multimédia (os treinos são gravados para avaliação posterior) e “gabinetes para médicos, psicólogos e treinadores”. O aspecto labiríntico do CAR também pode ajudar na própria performance: “Se tivermos aqui duas selecções rivais, é de esperar que não se queiram cruzar.” Isso acontece nos quartos, mas também no ginásio que, apesar de aberto, não é completamente recto. É a repetição de “um jogo dinâmico entre privacidade e a coisa própria e a colectiva”. No limite do edifício, a piscina interior, o banho turco ou a sauna podem ajudar a relaxar.

Lá fora, a calma continua. Há gatos e cães a brincar nas linhas de ferro enferrujadas, já desactivadas. O Pocinho é a última estação da linha do Douro, mas, tal como no final de cada corredor do CAR, há luz ao fundo. Para atletas de todo o mundo, aquela aldeia, aos poucos, vai deixando de ser segredo. Pode ser que o CAR ajude a impulsionar o turismo naquele concelho: “Em cinco edições do prémio [Arquitectura do Douro], Foz Côa tem três. Parece-me que é importante para Foz Côa e para o Douro e espera-se que isto transcenda a arquitectura.”

Apoiado por Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte.

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