Nove mulheres relatam histórias de alegado assédio sexual por parte de Plácido Domingo

Oito cantoras e uma bailarina contaram à AP situações de alegado assédio. Uma das mulheres relatou que o cantor de ópera enfiou a mão por debaixo da sua saia. Outras três contaram que forçou beijos em camarins, quartos de hotel e em almoços de trabalho. Domingo diz que as acusações são “imprecisas”.

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Plácido Domingo Nuno Ferreira Santos

Pelo menos nove mulheres relatam histórias de alegado abuso sexual perpetradas pelo tenor Plácido Domingo, um dos cantores de ópera mais conhecidos do mundo, nos últimos 30 anos. De acordo com os testemunhos recolhidos pela agência noticiosa norte-americana Associated Press (AP), o cantor lírico terá pressionado várias mulheres a manterem relações sexuais com ele a troco de trabalho; quando recusavam, este prejudicava-as profissionalmente.

Oito cantoras e uma bailarina descreveram à AP situações em que foram assediadas sexualmente pelo cantor espanhol ao longo de mais de três décadas (desde meados dos anos 1980), normalmente em situações em que Plácido Domingo ocupava posições de gestão dentro das companhias. Uma delas relatou que Domingo enfiou a mão por debaixo da sua saia e outras três contaram que Domingo forçou beijos em camarins, quartos de hotel e em almoços de trabalho.

“Um almoço de trabalho não é algo estranho”, disse uma das cantoras. “Mas ter alguém a tentar segurar a tua mão durante um almoço de trabalho é estranho — [alguém a] pôr a mão no teu joelho também é um pouco estranho. Ele estava sempre a tocar-te de alguma forma, sempre a beijar-te.

Sete das nove mulheres disseram à AP que se sentiram prejudicadas assim que rejeitaram os avanços de Plácido Domingo. Nalguns casos, os papéis que ele prometia nunca se chegavam a materializar. Noutros, nunca mais foram contratadas para trabalhar com ele novamente.

Para além das nove mulheres que relataram as suas histórias à AP, outras mulheres afirmaram à agência noticiosa terem sido alvo de investidas de Plácido Domingo que as deixaram desconfortáveis — como uma cantora que foi convidada para sair pelo cantor várias vezes depois de ter sido contratada para cantar com ele nos anos 1990.

Os relatos apontam para padrões de comportamento semelhantes por parte do tenor, entre os quais contactos insistentes (especialmente durante a noite) em que Domingo mostrava interesse pelas carreiras das intérpretes e sugeria encontros privados no seu apartamento ou no seu quarto de hotel, com o pretexto de que pretendia oferecer-lhes conselhos profissionais. Algumas mulheres acederam às investidas de Domingo por medo de verem as suas carreiras prejudicadas — a maioria das mulheres ainda estava à época no início da trajectória profissional.

A AP não teve acesso a provas documentais (como mensagens de telemóvel), mas tentou falar com mais pessoas que confirmassem a história e verificou que todas as mulheres trabalharam com Plácido Domingo nas alturas em que diziam tê-lo feito. No total, a AP falou com quase 30 cantoras, bailarinas, músicas de orquestra, membros do staff e professoras de canto e ainda com uma administradora que confirmaram os relatos de assédio.

Há uma tradição oral de aconselhar as mulheres a evitarem Plácido Domingo”, resumiu uma mulher que não está entre as acusadoras. “Evitar todas as interacções com ele a todo o custo. E definitivamente não ficar sozinha com ele.”

As mulheres eram também aconselhadas a evitar o álcool se se encontrassem com ele e a tentar marcar almoços em vez de jantares. Para evitar as investidas do cantor, várias mulheres relataram ter pedido a colegas que não as deixassem sozinhas no local de trabalho e não atender o telefone em casa.

Acusações “imprecisas”, reage cantor

Contactado pela agência noticiosa norte-americana, o cantor lírico recusou-se a comentar situações específicas, mas enviou um comunicado onde se lê que “estas acusações, de anónimas, que remontam a situações com mais de 30 anos, são muito graves e, tal como foram apresentadas, imprecisas”.

“Ainda assim, é doloroso ouvir que posso ter incomodado alguém ou tê-la deixado desconfortável — mesmo que tenha sido há muito tempo e apesar das minhas melhores intenções. Sempre achei que todas as minhas interacções e relações foram bem-vindas e consensuais”, continua o comunicado.

“No entanto, reconheço que as regras e os standards pelos quais nos regemos — e devemos reger — hoje em dia são muito diferentes dos do passado. Sou abençoado e privilegiado por ter uma carreira com mais de 50 anos na ópera e por me pautar pelos mais altos padrões.”

A resposta do cantor não terá sido suficiente para dissipar o desconforto provocado pelas acusações no meio musical norte-americano. A Orquestra de Filadélfia apressou-se a retirar-lhe o convite para actuar no concerto de abertura da próxima temporada, marcado para 18 de Setembro. “Estamos empenhados em criar um ambiente seguro, solidário, respeitoso e apropriado para a orquestra e para os seus funcionários, para artistas convidados e compositores, para as nossas audiências e comunidades”, lê-se no comunicado emitido esta tarde pela instituição. Já o Festival de Salzburgo, na Áustria, mantém as actuações previstas do tenor a 25 e 31 de Agosto, na versão de concerto da ópera Luisa Miller, de Verdi.

“Tens mesmo de ir para casa esta noite?”

Das nove mulheres que relataram à AP situações de assédio sexual, apenas uma aceitou ser nomeada: Patricia Wulf, uma meio-soprano que trabalhou com Plácido Domingo na Ópera de Washington — durante a encenação da peça Fedora, protagonizada por Domingo e Mirella Freni. Enquanto trabalharam juntos, Domingo confrontou-a todas as noites com a mesma questão: “Tens mesmo de ir para casa esta noite?”

Tudo aconteceu em 1998, numa altura em que Wulf, então com 40 anos, estava a começar a trabalhar em Washington. Plácido Domingo era, então, director artístico da instituição, cargo que manteve até 2003, quando passou a director-geral.

“Tens de compreender que quando um homem tão poderoso — ele é quase como Deus no meio — se aproximava tanto e dizia aquilo, a primeira coisa que te passava pela cabeça era: ‘O quê?’ Mas também, assim que consegues fugir, pensas: ‘Acabei de arruinar a minha carreira?’ E isso manteve-se ao longo da produção toda.”

De acordo com Wulf, enquanto trabalhou com o cantor, sentia medo de sair do seu camarim e deparar-se com ele no corredor — sendo que, não raras vezes, o cantor entrava no seu espaço de surpresa. “Afectou-me na forma como lido com os homens, no resto da minha carreira na ópera e no resto da minha vida”, lamenta a meio-soprano.

Plácido Domingo é um dos mais conceituados cantores de ópera da história recente: com mais de 3800 actuações no seu reportório e 50 anos de carreira, o cantor e maestro espanhol já arrecadou 12 Grammys (três deles Grammys latinos). É presença recorrente em Portugal: em Maio deste ano esteve no país para um espectáculo; em 2018, passou por Lisboa enquanto jurado da 26.ª edição do Operalia, um evento mundial que avalia jovens cantores líricos de todo o mundo.

Durante essa visita, foi condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa com a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública pelo “papel como presidente da Europa Nostra”, considerado “particularmente relevante” naquele Ano Europeu do Património Cultural. A condecoração foi ainda justificada pelo seu trabalho na “formação de jovens gerações”. Já antes havia sido distinguido com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, em 1998, por Jorge Sampaio. com Lusa

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