Regiões: olhar e não ver

Foi o atropelo abrutalhado dos distritos que criou o quadro desolador a que chegámos. Não podemos fracassar.

Foram muito importantes os trabalhos da Comissão Independente para a Descentralização presidida por João Cravinho. O acervo de documentos que deixa é valioso, seja o Relatório em si, seja o conjunto de estudos especializados parcelares e contributos recolhidos. Independentemente da sequência que, agora, os partidos políticos e a cidadania lhes venham a dar, constituem valioso património documental, que actualiza a reflexão sobre o tema das regiões administrativas. Faz as vezes do Livro Branco que, há anos, venho defendendo como indispensável, na linha do Livro Branco da Regionalização do governo Sá Carneiro, em 1980.

Porém, as conclusões relatadas pela Comissão revelam uma crucial – e sintomática – omissão de análise e apontam linhas inquietantes que, se fossem seguidas, mergulhar-nos-iam outra vez nas mesmas fracturas e no impasse que marcam este dossiê desde há mais de quatro décadas.

Na apresentação pública do Relatório, um membro da Comissão, João Ferrão, identificou um sentimento generalizado de que “o Estado está a abandonar boa parte do território” e rematou: “O país nunca esteve tão centralizado.” Este facto, diz o Relatório, “alimenta um perigoso sentimento de abandono por parte das populações que se sentem esquecidas e cada vez mais longe de decisores políticos vistos como distantes e inacessíveis.”

É isto mesmo: nunca o país esteve tão centralizado. Mas a raiz desta centralização extrema e absurda no continente não está em as regiões administrativas, previstas na Constituição, não terem tido desenvolvimento. Isso foi mau, mas não foi por causa do seu fracasso que o país se centralizou a este grau.

O que causou o quadro catastrófico de centralização, extenso despovoamento, desertificação crescente, fragilidade de vastos territórios, que vemos arder com frequência e intensidade, foi a surda e sistemática demolição dos distritos. Se os distritos se tivessem mantido no terreno – como a Constituição, aliás, determina, até as regiões administrativas se instalarem –, Portugal e os portugueses não teriam sofrido o que sofrem cada vez mais neste plano.

Há muito que aponto este como o problema mais grave da administração pública portuguesa, tendo semeado vazio e caos na sua malha territorial. É plenamente justificado o sentimento generalizado de que “o Estado está a abandonar boa parte do território”: o Estado tem mesmo vindo a abandoná-lo desde há 30 anos. E não merece estranheza um “sentimento de abandono por parte das populações que se sentem esquecidas e cada vez mais longe”: o Estado tem vindo mesmo a abandoná-las, pondo-as cada vez mais longe dos pólos de decisão.

A generalidade dos serviços da Administração Central tinha unidades desconcentradas nas capitais de distrito. Desde finais dos anos 1980, foram encerradas consecutivamente, concentrando-as geralmente nas sedes das CCDR. A malha administrativa do país passou de uma rede de 18 pólos para uma rede de apenas cinco. É isto descentralização? Desconcentração? Não, nada disso! Centralização e concentração foi a única coisa que fizemos.

As capitais de distrito foram esvaziadas de um relevante corpo técnico da Administração Pública, que reflectia em permanência sobre a realidade do respectivo território e da sua população. Eram actores e planeadores de proximidade, que interagiam com a representação política, a qual continua a ser feita em base distrital. Também criavam algum emprego técnico local e atraiam empresas e filiais. Nos últimos 30 anos, talvez porque se pensasse que a regionalização ia avançar logo a seguir e far-se-ia na ideologia das cinco regiões (as então CCR), a malha distrital foi apagada, consumando o abandono por parte do Estado. A Comissão Independente para a Descentralização devia ter reflectido sobre isto.

Agora, a ideia da Comissão é a regionalização vir a avançar segundo o modelo das cinco regiões. Por várias razões, sempre discordei desta ideia, que não serve o país. Estas “regiões” são evolução das regiões-plano do marcelismo: servem sem dúvida para NUTS II, quadro de referência para estatísticas, estudos e planos; não servem para estruturar administração e política. Se a regionalização fosse feita nessa base, o interior seria esquecido de vez e consumar-se-ia para sempre o abandono dos últimos 30 anos: a malha intermédia do país ficaria com cinco áreas e apenas cinco pólos (Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e Faro) em vez de 18. Centralização!

Há muitos a repetir que “os distritos não existem” ou “os distritos nada representam”. Tenho as maiores reservas quanto a ligeireza, mas pode ser que 30 anos de maus-tratos consecutivos tivessem produzido esse efeito. Está na hora de os distritos se fazerem ouvir – ou não. O que ganham Bragança, Vila Real, Viana do Castelo, Braga com uma Região Norte, ancorada no Porto? O que ganham Aveiro, Leiria, Viseu, Guarda, Castelo Branco com uma Região Centro, fundeada em Coimbra? O que ganham Portalegre e Beja com uma Região Alentejo, centrada em Évora?

O que estragou, temo que irremediavelmente, a regionalização foram ambições de poder territorial, numa espécie retardatária de feudalismo oligárquico. As regiões administrativas não são políticas, mas simples questão de divisão administrativa do Continente. Uma necessidade. Por isso é que o referendo tem que ser simultâneo: a divisão administrativa tem que ser integral para todo o Continente. Cheira a gato escondido com rabo de fora o acolhimento dado pela Comissão à ideia perversa de uma revisão constitucional que acabasse com a simultaneidade: isso pareceria secessionismo, nada teria a ver com divisão administrativa.

As regiões não foram concebidas para servir ambições de poder territorial no Porto, em Coimbra ou noutro centro. Aliás, o Porto necessita muito mais do pleno desenvolvimento da sua Área Metropolitana, que está entupida neste imbróglio, do que de uma Região Norte. E as Áreas Metropolitanas devem ser consideradas regiões administrativas com regime especial, não fazendo o menor sentido que, aí, a administração passasse a ter quatro patamares sobrepostos, em vez de apenas três. As regiões administrativas foram concebidas para porem a administração próxima dos administrados e, na sua face autárquica, nas mãos destes – como era também o figurino teórico dos distritos. E, se há alguns territórios prioritários, são os do interior, mais carecidos dessa proximidade, como é claramente o imperativo urgente e imediato.

É preciso olhar e ver! Foi o atropelo abrutalhado dos distritos e o desrespeito continuado do artigo 291.º da Constituição que criou o quadro desolador a que chegámos. Por isso, defendo que o mais acertado seria voltar à casa da partida (o art. 291.º), repondo a malha distrital, antes de embarcarmos em aventura e devaneios, gerando novos desastres e fracassos. Ou inspirarmo-nos no que sempre considerei uma das propostas mais inteligentes neste dossiê, que nos teria permitido avançar sem as querelas de territórios e capitais que contribuíram para embriagar espíritos e envenenar o ambiente. Seria, como propôs o PCP em 1986, 1987 e 1994, avançar para a criação das regiões com base na divisão distrital, prevendo, depois, o regime legal para acertos ou agregações territoriais. Por exemplo, as Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa/Setúbal poderiam ser regiões metropolitanas, ajustando-se em conformidade as áreas limítrofes. Assim como, possivelmente com incentivos na lei, poderia haver agregações nas Beiras, no Alentejo, em Trás-os-Montes e no Minho. Mas estaríamos a caminhar a partir da base e com passo certo, num modelo contido de administração autárquica e não em nova loucura política. Não podemos fracassar.

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