Viver para conviver, sem restrições de idade

O Inter-Age prova que, para ser activo, basta estar vivo. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa quer abalar pilares de preconceito e o abismo geracional, porque o importante é conviver.

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Os idosos têm acesso a várias actividades lúdicas inter-geracionais. SCML

“Uma coisa é colher, outra é plantar. Colheita é receber. Plantio é dar.” Os jovens e os idosos do Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca (CDCC) da Santa Casa têm em mãos o segredo de que falava o poeta Geir Campos: a ânsia mais verde não poda o crescimento à sabedoria madura da espera. À vez, as plantações também se sucedem, como as ideias, naquele território fértil.  

“É conforme a época”, explica Isabel Abreu, directora do CDCC. E há mesmo um momento para tudo: para os morangos colhidos directamente para as taças da sobremesa, para o feijão-verde, para as couves vendidas a uma associação, para a beterraba e para a curgete. Na horta do centro de dia, as plantações são feitas em conjunto, num conluio feliz que gera frutos.

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Crianças e idosos participam em actividades partilhadas no Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz no âmbito do programa InterAge. SCML

É assim há um ano, desde que o programa Inter-Age, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, chegou à Charneca do Lumiar para “responder às mudanças que ocorreram nas populações das cidades”, como assinala Isabel Abreu. “A resposta que os centros de dia davam estava um pouco descontextualizada. Os idosos já não queriam ir para estes sítios jogar às cartas ou fazer crochet.”

O Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca da Santa Casa abriu-se para todos, para toda a sorte de idades que ganham raízes emocionais e que mostram que nem só as árvores dão frutos. É uma população heterogénea que dá vida às paredes do centro, um design de interiores feito de companheirismo e diversidade. Os 64 utentes que aderiram ao Inter-Age podem facilmente conviver com as 77 crianças que a creche do CDCC tem à disposição da comunidade.

“Os idosos adoram as actividades intergeracionais, se não forem infantilizados”, esclarece a directora. A prova é o “Acontece às Quintas”, uma iniciativa que coloca dois idosos de cada vez a dinamizar entretenimento para as crianças da creche, uma vez por semana, claro está, às quintas-feiras. Sair de casa para aprender ou para brincar. É o apelo de Isabel Abreu, que quer que cada um comece a sair do seu cantinho para que não seja colocado em prateleiras, em qualquer prateleira. “O mais importante é não estigmatizar. As pessoas não são idosas, crianças, jovens, doentes. As pessoas são pessoas, devem conviver naturalmente”, nota.

A frescura da velha idade

Os contadores de histórias de vida ensinam, mas provam também que aprender é para quem está na flor da idade dos pensamentos. Os 33 colaboradores do centro, dez pertencentes ao programa Inter-Age, acreditam também que o homem, animal de hábitos, pode ser reeducado em qualquer fase da vida. “Hoje em dia os idosos já aderem lindamente à informática e todos têm Facebook”, refere Isabel Abreu, que concretiza: “Temos pessoas que só fizeram a quarta classe, mas que se interessam muito por informática. Uma senhora descobriu no Youtube como se faziam uns pontos de costura de que já se tinha esquecido.”

“Pessoas com passados difíceis e trabalhos duros”, que criaram “os filhos sozinhas, com dificuldades, mas sem recorrer à Misericórdia”, cujos filhos se licenciaram “e hoje estão bem”, vivem agora novas oportunidades para se aprimorarem em áreas como a ginástica, a costura criativa, artes plásticas ou recuperação de móveis. É a arte do restauro que também os coloca com sapatilhas confortáveis para uma aula de ioga, depois de muitos anos sem ter o que calçar. “Há pessoas que começaram a servir (trabalhar) aos oito anos e os seus pais tinham de esconder em buracos no chão o azeite produzido, quando havia muita produção, para não pagarem os excedentes ao Estado em tempo de ditadura, já que viviam no limiar da pobreza”, conta Isabel Abreu. Outros “dizem que tiveram os seus primeiros sapatos aos 12, 13 ou 14 anos”.

Sem esquecer o passado, o CDCC olha para o futuro, com a abertura de uma sala de snoezelen, onde é realizada esta técnica de estimulação com recurso a cheiros, cores e luzes para relaxamento.

Caminhando…lado a lado

Provou o passado que, muitas vezes, é no girar de uma roda que se começa a construir um novo mundo. É assim até para as pessoas mais dependentes no que diz respeito à mobilidade, sentadas numa cadeira de rodas, mas com um espírito sem prisões.

Ao bairro Padre Cruz, o Inter-Age chegou em Maio de 2018. A revolução passou das salas onde jovens e idosos conviviam para o palco, onde a comédia ganhou contornos reais. Os novos actores, dirigidos pela parceira Tenda Produções, encenaram o “Cornudo Imaginário”, de Moliére, para as gargalhadas colectivas de 120 espectadores no Centro Cultural de Carnide, em Lisboa.

No Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca, no âmbito do programa InterAge, não faltam actividades e animação. SCML
A dança é outra das actividades promovidas no âmbito do programa InterAge. SCML
No Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz o importante é que as pessoas se sintam activas. SCML
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No Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca, no âmbito do programa InterAge, não faltam actividades e animação. SCML

Se todos querem, todos dançam

Nesta sinergia comunitária, também a Câmara Municipal de Lisboa, com o programa Lisboa +55, leva aulas de pilates, fitness e de dança ao Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz da Santa Casa. É a professora Ágata que introduz os novos alunos nos ritmos, e, dos 45 aos 97 anos, ninguém quer perder um passo ou falhar uma nota.

Filipa Rodrigues, directora do centro de dia, lembra que há actividades transversais a todas as idades e interesses pessoais. “Em breve, vamos abrir uma turma de ioga. Já temos a turma completa e até lista de espera”, anuncia.

Para os apaixonados por capítulos novos que se descobrem no folhear de um livro, a parceria com a biblioteca Natália Correia possibilita encontros regulares com a literatura. “As técnicas da biblioteca vão ter connosco, e lêem e dinamizam histórias com as nossas crianças, jovens e idosos. Também trabalham temas importantes através de jogos lúdicos”, afiança Filipa Rodrigues.

Da biblioteca para a cozinha, todos podem usufruir dos grandes prazeres da vida. Por isso, há ateliers de culinária intergeracionais, em que jovens e idosos confeccionam salame de chocolate, areias e bolinhos de coco para a sobremesa do almoço ou para o lanche.

O melhor da vida é partilhá-la

No entanto, o maior usufruto do programa Inter-Age vive de pessoas, da aprendizagem que se bebe de cada nova amizade e das descobertas que são como uma dança em que prosseguem embalados, lado a lado. “Quinzenalmente, os idosos fazem uma visita à creche e dinamizam actividades com os nossos meninos”, revela a dirigente do centro de dia, ao leme das honras da casa desde 2016.

“Há uma maior tolerância entre as várias gerações, porque os jovens compreendem que os nossos idosos têm certo tipo de limitação, eles próprios vão ter com essas pessoas e ajudam-nos. E os mais pequeninos adoram ‘vir aos avós'”, conta Filipa Rodrigues, com orgulho.

Neste espaço de sã convivência, os mitos têm morte súbita e os preconceitos morrem de velhos. “Algumas pessoas estavam um pouco reticentes em frequentar, devido ao estigma de que o utente do centro de dia é uma pessoa já acabada ou doente. Achavam que era o primeiro passo antes de serem levados para um lar”, aponta.

A resposta não é essa. O Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz da Santa Casa cria pessoas mais autónomas e com mais vontade de viver, para recordar com maturidade e despertar para o novo com admiração. Afinal, sempre foi esse o equilíbrio da roda que nunca pára de se movimentar.