A charlatanice glorificada na Lei de Bases da Saúde

Uma vez mais o poder político encontra atalhos para a falta de provas das terapias alternativas.

As terapias alternativas deverão ficar reforçadas na nova Lei de Bases da Saúde, aprovada no final de Julho, caso esta seja confirmada pelo Presidente da República, em sentido contrário com os recuos que têm vindo a acontecer noutros países. O Governo francês anunciou recentemente que irá deixar de comparticipar remédios homeopáticos por causa da falta de provas da sua eficácia. O sistema nacional de saúde britânico já tinha decidido o mesmo pelas mesmas razões. O Governo espanhol avançou este ano com uma campanha de informação pública contra as pseudociências na saúde, enfatizando a falta de provas das terapias alternativas (o hashtag da campanha é #coNprueba). Nós insistimos em andar em contramão. Na versão aprovada pelos deputados, pode ler-se na Base 26:

1 – “O exercício das terapêuticas não convencionais é regulado por lei, efectuado de modo integrado com as terapêuticas convencionais e de forma a garantir a protecção da saúde das pessoas e das comunidades, a qualidade assistencial e tendo por base a melhor evidência científica”;

2 – “É competência do ministério responsável pela área da saúde e credenciação, tutela e fiscalização da prática das terapêuticas não convencionais, de acordo com a definição aprovada pela Organização Mundial da Saúde”.

Por um lado, diz-se que as terapias alternativas devem ter “por base a melhor evidência científica” — caso em que não sobraria nada ou praticamente nada delas. Para logo a seguir dizer que, afinal, o que conta são os documentos políticos da Organização Mundial da Saúde (OMS). São duas coisas muito diferentes — a OMS é (também) uma organização política, que tal como a Assembleia da República portuguesa é permeável ao lobby. Se as terapias alternativas tivessem “por base a melhor evidência científica” não precisariam de leis especiais nem desta Base 26. Os seus tratamentos seriam aprovados, como quaisquer outros, em face das provas. Mas a nenhum tratamento de nenhuma terapia alternativa é exigido qualquer prova de eficácia para a sua introdução no mercado.

Os remédios homeopáticos, por exemplo, são aprovados pelo Infarmed através de um regime simplificado (artigo 137 do Decreto-Lei 176/2006), em que apenas têm de provar que são inócuos — o que não é difícil, pois são apenas água e açúcar e nenhum outro efeito têm a não ser o placebo. Se os terapeutas alternativos acreditam realmente que as suas práticas têm fundamento científico, então que aceitem sujeitar os seus tratamentos ao mesmo crivo exigido aos medicamentos normais, abdicando de todos os regimes especiais.

Esta não é a primeira vez que o poder político encontra atalhos para a falta de provas das terapias alternativas. Uma avalanche de legislação absurda aprovada desde 2013 obriga a Administração Central do Sistema de Saúde a emitir cédulas profissionais para praticantes de medicinas que não funcionam (o equivalente à Direcção-Geral de Veterinária creditar amestradores de dragões) e define mesmo conteúdos programáticos para licenciaturas em banha da cobra (uma fraude com o aval do Estado que induz alunos a fazerem essas licenciaturas em terapias alternativas).

A aspiração agora no horizonte é naturalmente a introdução destas práticas no Serviço Nacional de Saúde, pondo os contribuintes a pagar tratamentos que não funcionam e que colocam em risco a saúde e a vida dos doentes. Por exemplo, no caso do cancro, um estudo realizado com quase dois milhões de pacientes, publicado na revista científica JAMA Oncology no ano passado, revelou que os doentes oncológicos que recorrem às terapias alternativas em complemento aos tratamentos convencionais têm uma mortalidade duas vezes superior aos que recorrem apenas aos tratamentos convencionais. Isto acontece, entre outras coisas, porque atrasam o início dos tratamentos que realmente lhes podiam salvar a vida.

A Lei de Bases da Saúde deixa implícito que as terapias alternativas têm fundamento científico, o que não é verdade. O Presidente da República vetou recentemente o estatuto de interesse público da Escola Superior de Terapêuticas Não Convencionais por considerar que não existe “validade cientificamente comprovada”. As mesmíssimas razões se aplicam neste caso e justificam que o Presidente da República devolva esta Lei de Bases ao Parlamento, para que possa ser melhorada.

Bioquímico e divulgador de ciência

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