O Canal é uma das últimas praias selvagens (e desertas) do Algarve

O acesso pode ser desafiante e, ao contrário da vizinha Arrifana, não tem apoios de praia, restaurantes nem nadador-salvador. Mas é toda só para nós. Quantas vezes se pode dizer isto no Algarve?

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Rui Gaudêncio
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O caminho para lá chegar é um tanto difícil. Não seria uma das praias mais selvagens – e desertas – do Algarve se assim não fosse. Ainda para mais quando o carro pode ficar estacionado mesmo em cima da praia e sem qualquer disputa por lugar.

Mas, até lá chegarmos, vai o coração na boca, balançado pela gincana que fazemos ao volante para fugir de algum buraco mais fundo, de uma pedra mais alta ou trilho arenoso. Não me recordo da última vez que estive na praia do Canal, em Aljezur, mesmo a seguir à Arrifana. Sei que não vinha aqui há uns bons 15 anos. “Dizem que o caminho não está bom.” “O carro não chega lá.” “Tem de ser de jipe.”

Na véspera, os mesmos avisos: “Tem de se deixar o carro cá em cima e fazer o resto a pé.” Desta vez, não damos ouvidos. Metemo-nos pelo caminho que o GPS indica, a passar pelas casas dispersas, transformadas em alojamentos locais, da povoação de Chabouco. Logo se vê. E a verdade é que fomos e viemos sem qualquer percalço. Se um velho Renault Clio consegue, a maioria é capaz de vencer a proeza.

Cá chegados, pés sobre as primeiras pedras, parece que a praia se cristalizou na memória que tinha dela. O Canal era uma das minhas praias de infância. Era aquela a que íamos em família uma vez por ano, às vezes menos. A praia onde raramente encontrávamos outra pessoa para além do senhor Joaquim. Parecia um segredo só nosso, uma vivência que mais ninguém tinha.

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É que esta não era a praia onde íamos fazer praia. Esta era a única praia onde íamos que raramente tinha praia – e hoje, parece que a abençoar o regresso, estende-se por um areal deserto a perder de vista, o horizonte escondido atrás de uma neblina mística. Esta era a praia de desenhar nas rochas e de apanhar lapas e burgaus. Para o meu pai, desaparecido para lá das primeiras falésias durante horas, ficava o trabalho de descobrir polvos entre os rochedos, de apanhar mexilhões e ouriços-do-mar. Esta era a praia onde íamos fazer tudo o que não fazíamos nas outras praias.

Aqueles seixos negros ainda pintam em tons de branco, os outros de laranja. Não consigo encontrar os que desenhavam em vermelho. Quando era miúda, era normalmente assim que começavam os dias no Canal. Primeiro, ia à caça dos lápis do mar. Depois escolhia um dos rochedos maiores e lisos e ficava ali entretida por uns bons minutos a desenhar. Quando me fartava, descia pelos calhaus em passos de equilibrista até junto à beira-mar, onde se formam as poças, e ficava a apanhar lapas e burgaus (búzios do mar) com a minha mãe. O jantar era sempre mariscada – as colheitas do dia enfartadas com pão e manteiga.

Às vezes, compravam-se polvos ou algum peixe ao senhor Joaquim. Um sargo, um safio, uma das moreias que já estavam a secar no estendal quando chegávamos. O que me impressionava aquele homem: já teria uns 80 anos, a pele enrugada muito queimada pelo sol, magro, rijo e ágil, rude no trato, mas sempre disposto a dois dedos de conversa, uma piada, um cigarro, um copo de vinho. Vivia sozinho nesta casa colada à praia, agora em ruínas.

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Não sei o que me fascinava mais: se o facto de viver aqui sozinho, tão longe de tudo, tão perto do lado mais áspero da Costa Vicentina; se o facto de quase todos os dias ir à pesca e de quase todos os dias subir por estes trilhos de bicicleta para ir vender a safra aos restaurantes de Aljezur. Declives acentuados, de terra e pedras, que poucos carros têm coragem de descer e de subir e ele fazia-os todos a pedal.

O senhor Joaquim morreu há dois ou três anos. Tinha 90 e muitos. Provavelmente estaria por aqui na última vez que estive na praia do Canal. Ou já teria desaparecido na sua bicicleta rumo à vila? Não me recordo da última vez que o vi. Hoje voltei e a primeira coisa que vejo é um pescador solitário, de costas, encavalitado sobre as pedras junto ao mar. Senhor Joaquim?

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Depois de um passeio pela praia absolutamente deserta (só se deixa ver na maré-baixa) e de um semibanho nas ondas – a água continua fria e batida, como em quase todas as praias por aqui –, vou ter com o pescador. Chama-se Miguel. Estava outro lá ao fundo que, entretanto, se juntou. É um jovem alemão, Emmanuel.

É a primeira vez que vem a Portugal e há três semanas que está por aqui com a mulher e a filha, alojado na casa de outro alemão, creio que a única pessoa que vive actualmente nas imediações da praia. O senhor Miguel está a explicar-lhe em português e por gestos como deve colocar o anzol e o chumbo para não ficar preso entre as rochas. Emmanuel vai acenando e sorrindo, mesmo quando não percebe. Tentamos traduzir o que falta.

Desta vez, não foi uma manhã de pesca proveitosa. Emmanuel não conseguiu apanhar nada e Miguel só traz dois sargos pequeninos. “Podiam ser quatro, mas perdi um agora aqui e outro ali ao fundo.” Estamos todos de saída. Daqui a minutos, à excepção de uma caravana de matrícula espanhola que não chega a dar sinal de gente, a praia do Canal vai voltar a estar absolutamente deserta.

Não sei se vou estar outros 15 anos sem voltar, mas sempre que regressar espero encontrá-la assim, selvagem e imaculada. Uma das únicas que restam no Algarve.

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