Confirmado: a placenta é (quase) um lugar estéril

Investigadores analisaram amostras de placentas de 500 mulheres e concluíram que uma possível infecção bacteriana não deve ser encarada como uma causa comum de problemas na gravidez

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Nuno Ferreira Santos

Não foi encontrado um microbioma na placenta humana, mas podem ali instalar-se certos agentes patogénicos. Esta é a ideia que está no título do artigo publicado na ultima edição da revista Nature. Os investigadores queriam saber se problemas como a pré-eclampsia, parto prematuro ou bebés de baixo peso para a idade gestacional estariam de alguma forma relacionados com a presença de ADN bacteriano na placenta humana. Após a análise de amostras de placentas de 500 mulheres, concluiu-se que a infecção bacteriana não pode ser considerada uma causa comum de um resultado adverso da gravidez.

Antes de mais, convém esclarecer a diferença entre microbiota e microbioma. Segundo alguns especialistas, a microbiota será o termo mais adequado para falar nos conjuntos de microorganismos que vivem nos nossos tecidos e o microbioma já se refere a essas comunidades e aos seus genes (que podem interagir com o nosso genoma). O microbioma mais estudado até agora é o que vive nos nossos intestinos e que, em inúmeros estudos, tem revelado uma poderosa influência em vários aspectos da nossa saúde, inclusivamente da nossa saúde mental. Cada um de nós carrega um microbioma único e distintivo, como se fosse uma impressão digital.

O estudo realizado por cientistas da Universidade de Cambridge e do Instituto de Higiene e Medicina tropical, no Reino Unido, envolveu o sequenciamento de ADN das amostras de placentas de mais de 500 mulheres. “O maior estudo conhecido deste tipo”, sublinha um comentário que acompanha a publicação do artigo na Nature. No mesmo texto, admite-se que “há muito tempo que se pensa que a placenta humana é um ambiente estéril livre de microrganismos” – uma tese conhecida por hipótese do “útero estéril”.

A visão da “era pré-sequencial"

O problema é que sabemos que a disfunção placentária está associada a resultados adversos na gravidez, mas na maioria dos casos desconhece-se as causas dessa disfunção. Os autores do artigo lembram que na visão da “era pré-sequencial” (antes das modernas técnicas de sequenciamento do ADN) já se acreditava que a placenta era normalmente estéril”. Depois disso, vários estudos já apoiados em métodos baseados em sequenciamento de ADN para detecção bacteriana tinham sugerido que a placenta “é fisiologicamente colonizada por uma população diversa de bactérias (o ‘microbioma placentário’)” e que a partir da natureza dessa colonização se distinguem gestações saudáveis ​e complicadas.

A verdade é que os vários estudos que aplicaram métodos baseados no sequenciamento da ADN falharam na detecção do tal microbioma placentário. Isto porque se percebeu que a presença de ADN bacteriano na placenta se podia explicar com uma possível e provável contaminação durante ou depois do parto.

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REUTERS/Michaela Rehle

“O objectivo do estudo que realizámos foi determinar se a pré-eclampsia, parto de recém-nascidos pequenos para a idade gestacional ​e parto prematuro espontâneo estavam associados à presença ou a um padrão de ADN bacteriano na placenta e determinar se havia provas para apoiar a existência de um microbioma placentário”, referem os cientistas no artigo, acrescentando que os testes realizados minimizam as hipóteses de terem resultados falsos-positivos por contaminações bacterianas.

Após a análise e pesquisa a ADN bacteriano, concluíram que, tanto em gestações complicadas como em gestações sem o registo de problemas, “a maioria das amostras não apresentou provas de colonização bacteriana”. O uso da palavra “maioria” pressupõe que não sejam todas, claro. “A excepção foi Streptococcus agalactiae (Streptococcus do grupo B), uma das principais causas de sépsis [infecção generalizada provocada pela presença de microorganismos patogénicos] em recém-nascidos, que foi encontrado em aproximadamente 5% das amostras, antes do trabalho de parto”, referem os investigadores.

Segundo explicam, quase todos os sinais detectados de ADN bacteriano estavam relacionados com a aquisição de bactérias durante o trabalho de parto ou com o contacto com reagentes de laboratório. A excepção foi, sublinham, a presença de Streptococcus do grupo B, onde se percebeu que os sinais detectados afastam a hipótese de contaminação. Assim, apesar de constatarem que “a infecção bacteriana da placenta não é uma causa comum de resultado adverso da gravidez e que a placenta humana não tem um microbioma”, os cientistas notam que, ao mesmo tempo, a placenta também “representa um potencial local de aquisição perinatal de S. agalactiae, uma das principais causas de sépsis neonatal”.

No comentário assinado por Nicola Segata, um investigador da Universidade de Trento, em Itália, que não participou neste trabalho, valoriza-se sobretudo o facto de os resultados deste trabalho indicarem que é improvável que a placenta seja a principal fonte da microbiota dos recém-nascidos. Os mecanismos exactos pelos quais a microbiota humana é estabelecida em recém-nascidos continuam por determinar de forma conclusiva, mas “podemos agora estar confiantes de que a placenta não é o reservatório microbiano”, acrescenta Nicola Segata.

Por um lado, este estudo confirma uma suspeita já existente mas, por outro, mantém um velho mistério. Assim, ao reforço da hipótese do “útero estéril” que sugere que a infecção bacteriana da placenta não deve ser encarada como uma causa comum de um desfecho problemático de uma gravidez contrapõe-se a incerteza que se mantém sobre a principal fonte da microbiota nos recém-nascidos. Se não é transmitida no útero através da placenta, como se forma afinal?

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