Bolsonaro sem savoir-faire diplomático para gerir relações com França

Governo francês é um dos mais críticos da política ambiental de Brasília, mas o seu apoio será crucial para que acordo comercial entre a UE e o Mercosul seja concretizado.

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Jean-Yves Le Drian (esquerda) ao lado do homólogo brasileiro, Ernesto Araújo ADRIANO MACHADO / Reuters

Na torrente de controvérsias e declarações polémicas que envolveram o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, na última semana passou pelos pingos da chuva um episódio que revela o desgaste nas relações diplomáticas entre o Brasil e França. Em causa pode estar o acordo de comércio livre entre a União Europeia e o Mercosul, que em Paris desperta muitas reservas.

Na segunda-feira, Bolsonaro cancelou em cima da hora uma reunião previamente marcada com o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Yves Le Drian, para fazer um vídeo em que apareceu a cortar o cabelo e a explicar a sua versão sobre outra polémica em que se envolvera horas antes. O Le Monde falou em “estupefacção” no Quai d’Orsay, a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Podendo ser apenas mais um comportamento desconcertante que Bolsonaro já tornou quotidiano desde que chegou ao Palácio do Planalto, há oito meses, o cancelamento do encontro com Le Drian esconde algo mais profundo. O Governo francês tem sido um dos mais duros nas críticas às políticas ambientais defendidas pela Administração brasileira, que defende o fim da demarcação de terras indígenas, quer aumentar a desflorestação na Amazónia e entende que a protecção ambiental e a indústria são incompatíveis.

A desconfiança de Paris face a Brasília atingiu o ponto máximo na cimeira do G20, em Osaca, no final de Junho, quando o Presidente francês, Emmanuel Macron, pressionou o Brasil a manter-se no Acordo de Paris sobre as alterações climáticas – Bolsonaro tinha indicado pretender seguir o exemplo do líder dos EUA, Donald Trump, e abandonar o pacto sobre o clima.

Para Macron, o respeito pelos limites de emissões de dióxido de carbono previstos pelo Acordo de Paris era uma condição indispensável para que o acordo comercial negociado há duas décadas entre a UE e o Mercosul (o bloco económico que junta a Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) pudesse ver a luz do dia. Enquanto decorria a cimeira, as duas partes chegaram a um compromisso político para fechar o acordo.

O entendimento alcançado foi saudado em Brasília, que prevê um crescimento das exportações para a Europa equivalente a 7% do PIB em 15 anos após a entrada em vigor do acordo. A fatia de leão das exportações brasileiras para a UE corresponde a produtos agrícolas – a soja domina, seguida do milho e do café.

O acordo tem um longo caminho ainda pela frente até se tornar uma realidade e abolir virtualmente todas as taxas aduaneiras nas trocas comerciais entre os dois blocos. Para além de necessitar da luz verde das instituições europeias e sul-americanas, o texto terá ainda de passar pelo crivo dos parlamentos nacionais dos mais de 30 países envolvidos. E em França, há muito pouca pressa para que isso aconteça.

Esta semana, o Governo francês nomeou uma comissão independente para avaliar o acordo, que será liderada por um economista especializado em política ambiental. Segundo o El País Brasil, a análise irá levar em especial consideração as emissões de gases com efeito de estufa, o nível de desflorestação, e a protecção da biodiversidade.

Apesar da insistência nos temas ambientais, o acordo UE-Mercosul preocupa Paris também por razões económicas. França receia que o seu estatuto de potência agrícola na Europa possa ser posto em causa e quer proteger os produtores nacionais. Uma das medidas que mais preocupa é a aplicação de uma quota de importação fixa de 99 mil toneladas de carne bovina – o Brasil e a Argentina estão entre os maiores exportadores de carne bovina a nível mundial.

“Não teremos um acordo a qualquer preço”, avisou o ministro francês da Agricultura, Didier Guillaume. A França encabeça um grupo de países europeus, que integra a Irlanda e a Polónia, que exige maior protecção aos produtores agrícolas nacionais.

Falhado o encontro com Bolsonaro, Le Drian contentou-se com uma reunião com o homólogo, Ernesto Araújo, a quem deixou um aviso respeitoso, mas bem claro: “Reconhecemos o enorme potencial económico que esse acordo representa para as empresas francesas. Ao mesmo tempo, cabe-nos tomar o tempo necessário para realizar, de nossa parte, uma avaliação nacional que seja completa.”

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