À procura de João Gilberto, agora que já sabemos onde ele está

Tal como o livro de Marc Fischer, o filme de Georges Gachot centra-se no processo de busca; não tanto em encontrar João Gilberto, mas em descrevê-lo nessa procura.

Agora que todos sabemos onde está João Gilberto (e como o seu violão nos contempla lá do alto, desde 6 de Julho), chega este sábado a Portugal, para exibições pontuais em sala, o filme Onde Está Você, João Gilberto? Realizado pelo francês George Gachot, que já tem no seu portfolio filmes sobre o Brasil como Maria Bethânia: Música é Perfume (2005), Rio Sonata  Nana Caymmi (2010) ou O Samba (2014), sobre Martinho da Vila e a escola de samba Vila Isabel, o documentário Onde Está Você, João Gilberto? persegue um mistério, seguindo as pistas deixadas pelo jornalista e escritor alemão Marc Fischer no livro Hô-bá-lá-lá – À Procura de João Gilberto. E se Fischer não conseguiu mais do que pistas e sombras, sem nunca se encontrar com o mago da bossa nova, Gachot procurou decifrar o mistério do mistério, confiando que, nessa busca, iria “ler”, compreendendo-as, a alma e a história do movimento a que João deu corpo e voz.

“Vai e encontra-o, Sherlock.” É uma frase que se ouve em off, enquanto Gachot folheia o livro de Fischer e a câmara “folheia” um corredor de portas fechadas, quase na penumbra, com a voz e o violão de João Gilberto a insinuarem-se baixinho: “Se você disser que eu desafino, amor…” É a ilusão de que o cantor estaria por detrás de uma daquelas portas, num concerto eterno, sem que algo perturbasse o silêncio em seu redor, ali escondido há 30 anos, como nos diz a voz off, sem nunca abandonar o registo ardilosamente investigativo (“Vai e encontra-o, Sherlock”): “Levanta-se quando todos se deitam, deita-se quando todos se levantam. Como um fantasma.” Mas é um fantasma que canta. E “é ele que procuramos, Watson e eu”, diz Gachot-Sherlock, que “contratou” o mesmo Watson (uma mulher, Rachel) que ajudou Fischer na sua pesquisa.

Tal como o livro, o filme centra-se no processo de busca; não tanto em encontrar João, mas em descrevê-lo nessa procura, através de quem o conhece, o viu, o encontra sem mistérios, porque o suposto fantasma tem uma vida para lá da imagem etérea e ela materializa-se em coisas banais como respirar, comer, falar com amigos escolhidos, tocar e cantar quando e como quer. É tudo isto que Gachot vai descobrindo, falando com o cozinheiro do restaurante que prepara a comida de João (entregue sempre pelo mesmo rapaz, que deixa a bandeja à porta, sem nunca entrar) e descobrindo que, embora não se conhecessem, o cozinheiro e o cantor eram amigos virtuais: passavam horas ao telefone, a conversar. Gachot fala também com músicos como Miúcha (ex-mulher de João, morreu em Dezembro de 2018), João Donato, Roberto Menescal, Marcos Valle ou com velhos conterrâneos da cidade mineira de Diamantina (onde João se refugiou como um monge, antes de espantar o mundo com a sua incrível batida de violão).

Por detrás desta busca, onde uma porta fechada pode ser a chave do enigma, João Gilberto teve no passado uma vida menos enclausurada do que se insinua. O escritor e compositor Nelson Motta conta, no seu livro Noites Tropicais (Objetiva, 2000, pág. 18), como certa noite ouviu João Gilberto cantar, tocar e conversar com o seu pai, no apartamento do avô, para onde fora “levado por Dory Caymmi e diante de poucas testemunhas”. “Naquela noite, naquele terraço sobre Copacabana, hipnotizado, vi e ouvi João Gilberto de perto pela primeira vez”, recorda. Também o investigador, radialista e musicólogo Zuza Homem de Mello, que escreveu um livro intitulado João Gilberto (Publifolha, 2001), contou em Música com Z (Editora 34, 2014, pág. 290) como João – “de terno e gravata como sempre” – cantou, em 1985, num ambiente que lhe era estranho, o da “bizarra parafernália” da danceteria Latitude 3001, em São Paulo. E há ainda quem garanta que João deu um “concerto” privado em casa alheia, só pelo prazer de ali tocar.

Entre a magnitude do cantor-músico e a sombra do fantasma recluso, o filme traça uma linha ténue que nos agarra ao que ouvimos sem ver: uma música ímpar, perfeita, quase celestial. E é isso que ressoa, quando num corredor, a uma porta, tentamos adivinhar o que ela esconde.

Onde Está Você, João Gilberto?, diz a distribuidora, foi apresentado em 2018 no Festival de Locarno e no Festival Internacional de Documentário de Munique e em 2019 e no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires. Em Portugal, vai ser apresentado no dia 3 em Lisboa, no cinema Monumental (21h30), sala à qual voltará nos dias 10, 18 e 25 de Agosto e 1 de Setembro. Depois percorrerá outras cidades: Porto, Coimbra, Braga e Setúbal. Quem se sentir Sherlock e gostar de bossa nova, apreciará a busca. E há-de encontrar João Gilberto.

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