Ataque político de Bolsonaro transforma-se em revisionismo histórico

O Presidente deu uma versão alternativa sobre o desaparecimento do pai do presidente da Ordem dos Advogados e rejeitou as conclusões do único organismo que investigou os abusos da Ditadura Militar.

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Bolsonaro nega que o regime militar vivido no Brasil entre 1964 e 1985 tenha sido uma ditadura Antonio Lacerda/EPA

A memória da Ditadura Militar voltou a estar no centro de uma controvérsia envolvendo o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Esta terça-feira o chefe de Estado pôs em causa a legitimidade da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o organismo estatal que entre 2011 e 2014 investigou as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado durante o regime que vigorou entre 1964 e 1985.

A polémica arrastava-se desde a véspera, mas sem evidenciar qualquer tentativa para a neutralizar, Bolsonaro decidiu ir mais além e desvalorizou o trabalho da CNV, que representou a única iniciativa governamental de trazer reparação as vítimas da ditadura, quase 30 anos depois do seu final.

Tudo começou na segunda-feira, quando Bolsonaro apontou a mira ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, cujo pai morreu depois de ser detido nos anos 1970 pelas forças de segurança. Inicialmente, o Presidente criticava a OAB por ter impedido o acesso da Polícia Federal ao telemóvel do advogado de Adélio Bispo, o autor da tentativa de homicídio contra Bolsonaro durante a campanha eleitoral.

Sem que nada o fizesse prever, Bolsonaro dirigiu-se então a Felipe Santa Cruz: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, afirmou Bolsonaro, acrescentando que o pai de Santa Cruz integrou “a Ação Popular (AP), o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco”.

Fernando Santa Cruz pertencia à Ação Popular Marxista-Leninista, um movimento dissidente da AP, e ambos se opunham à ditadura e eram perseguidos pelas autoridades policiais e militares. Foi visto pela última vez em Fevereiro de 1974, quando saiu de casa para se encontrar com um amigo e avisou a família que poderia ser preso.

Horas depois de ter feito as primeiras declarações, o Presidente cancelou uma reunião marcada com o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Yves Le Drian, e apareceu num vídeo em que oferecia a sua versão sobre o que aconteceu a Fernando Santa Cruz, enquanto cortava o cabelo. Bolsonaro diz que foram os dirigentes da AP os responsáveis pelo desaparecimento do militante de extrema-esquerda, embora não tenha fornecido qualquer evidência nesse sentido.

“Essa é a informação que eu tive na época”, limitou-se a dizer Bolsonaro, referindo ainda o livro de memórias do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, A Verdade Sufocada. Ustra dirigiu um dos principais centros de repressão policial durante a época ditatorial e foi o primeiro militar a ser condenado por tortura, em 2008 – quando votou a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, Bolsonaro, então deputado federal, prestou homenagem a Ustra, que descreveu como “o pior pesadelo” da ex-Presidente, que chegou a ser torturada por ele.

“Crueldade”

No seu relatório final, a CNV concluiu que Fernando Santa Cruz foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro”, citando depoimentos de responsáveis militares e policiais da época. Um deles, o ex-chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-ES), Cláudio Guerra, revelou em 2014 que o corpo foi incinerado em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro.

Felipe Santa Cruz, que tinha um ano quando o pai desapareceu, considerou as declarações de Bolsonaro uma “crueldade”. “É de se estranhar tal comportamento num homem que se diz cristão”, acrescentou o presidente da OAB, que pretende levar Bolsonaro a contar o que sabe ao Supremo Tribunal Federal.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos considera “muito grave” a atitude do Presidente. “Ele está a transformar um dever oficial, que é dar informações aos familiares, que ele já deveria ter cumprido, num uso político contra um crítico do seu governo”, disse a presidente da comissão, Eugênia Augusta Gonzaga, citada pela Folha de São Paulo.

Nem mesmo aliados políticos de Bolsonaro, como o governador de São Paulo, João Dória, deixaram de criticar as declarações do Presidente. “É inaceitável que o Presidente da República se manifeste da forma como se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB”, declarou Dória. Já o juiz do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, sugeriu um “aparelho de mordaça” para travar as declarações incendiárias de Bolsonaro.

Esta terça-feira, o chefe de Estado foi confrontado com as conclusões da investigação ao desaparecimento de Santa Cruz, mas desvalorizou o trabalho da comissão. “Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da Comissão da Verdade? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma”, disse Bolsonaro aos jornalistas, em Brasília.

Questionado sobre se possui algum documento que apoie a versão de que foi o grupo armado de extrema-esquerda que matou Fernando Santa Cruz, Bolsonaro disse não haver “nada escrito”. “Documento é quando você se casa, você se divorcia.”

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