Vamos eliminar a hepatite C?

Para Portugal alcançar os objetivos previstos pela OMS até 2030, são necessárias políticas de saúde que invistam na prevenção, diagnóstico, ligação aos cuidados de saúde e acesso e retenção em tratamento da hepatite C.

A hepatite C é uma doença hepática causada pela infeção pelo VHC. O VHC pode causar hepatite aguda e crónica, variando em gravidade, desde uma doença que dura apenas algumas semanas até uma doença vitalícia, resultando em cirrose e cancro do fígado. O vírus é adquirido, principalmente, pela via sanguínea através da partilha de material cortante ou perfurante. Na Europa, a principal via de transmissão do VHC é através do uso de drogas injetáveis ​​como resultado da partilha de agulhas contaminadas. Com menor probabilidade, o vírus pode ser transmitido por via sexual devido a práticas de sexo traumático, em ambientes de saúde devido a práticas inadequadas de controlo da infeção ou por transmissão vertical, de uma mãe portadora da infeção para o bebé.

Aproximadamente 399.000 pessoas morrem, a cada ano, de hepatite C, principalmente de cirrose e carcinoma hepatocelular. Cerca de 15-45% das pessoas infetadas limpam espontaneamente o vírus dentro de seis meses após a infeção, sem qualquer tratamento. As restantes 60-80% das pessoas desenvolvem uma infeção crónica pelo VHC. Daquelas com infeção crónica por VHC, o risco de cirrose hepática situa-se entre 15-30% em 20 anos. De acordo com os últimos dados disponíveis no Portal da Hepatite C do Infarmed (2019), foram registados 24.649 tratamentos, dos quais, 22.844 foram iniciados. Dos tratamentos concluídos, 13.444 doentes foram curados e 499 não foram, ou seja, uma percentagem de sucesso de 96,4%.

Desde 2015 e até meados de 2017, Portugal introduziu, pela primeira vez, um modelo de financiamento centralizado e vertical, baseado nos resultados em saúde, neste caso o Estado Português pagaria por doente curado. Este modelo permitia uma equidade no acesso ao tratamento, visto não depender dos orçamentos de cada hospital. Porém, em 2017, o modelo mudou para o financiamento local, gerando tempos de espera para início de tratamento muito dispares por hospital e comprometendo o alcance dos objetivos da OMS para 2030. 

A 17 de Fevereiro de 2016, Portugal assina, através do secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, em Bruxelas, por ocasião da Cimeira Política da União Europeia sobre o VHC, o “Manifesto para a Eliminação do VHC”, onde firmam que a hepatite C deverá:

  • ser uma prioridade clara de saúde pública;
  • contar com o envolvimento dos doentes e da sociedade civil;
  • ser dada atenção à ligação entre a hepatite C e a marginalização social; e
  • ser introduzida uma Semana Europeia de Consciência sobre a Hepatite.

De acordo com observatório Polaris da fundação CDA, somente 12 países é que irão conseguir alcançar o objetivo da OMS de eliminação da hepatite C e Portugal não figura nessa lista (em Waheed et al., 2018).

De acordo com Razavi et al. (2019), e com recurso a um modelo de modelagem de progressão de doença, Portugal não irá alcançar o objetivo da OMS até 2030, se mantiver as atuais políticas de saúde. A descentralização da compra de medicamentos e a iniquidade no acesso ao tratamento revela-se como um dos aspetos mais cruciais.

Para Portugal alcançar os objetivos previstos pela OMS até 2030, são necessárias políticas de saúde que invistam na prevenção, diagnóstico, ligação aos cuidados de saúde e acesso e retenção em tratamento da hepatite C. Hoje em dia, com a existência de medicamentos que permitem a cura da hepatite C entre oito a 12 semanas e com a simplificação do regime visto já serem pangenotípicos, é preciso apostar no rastreio e na ligação aos cuidados de saúde. Aqui, e numa visão centrada no doente, acredito que deverão ser os cuidados de saúde que deverão ser ligados às pessoas e não as pessoas aos cuidados de saúde. Esta mudança de paradigma, que assenta na proximidade e na centralidade do doente, permitirá melhores resultados em saúde e, bem assim, a eliminação da hepatite C.

Um dos principais dilemas que os políticos enfrentam, e atendendo que os recursos financeiros são limitados e finitos, é a alocação de verbas para cada uma das patologias/doenças. Sabemos também, hoje em dia, que as doenças não-transmissíveis são as que apresentam mais custos e com o envelhecer da população espera-se que estes valores ainda sejam maiores. Sendo possível a eliminação de uma doença transmissível, visto já haver uma cura para a mesma, fará sentido apostar hoje na sua eliminação por forma a reduzir no futuro os custos em saúde e disponibilizar, assim, mais orçamento para as doenças não-transmissíveis. 

A estratégia da micro eliminação poderá não ser somente por população de pertença, mas também por território, havendo a meu ver dois territórios que, devido à insularidade, se configuram como profícuos para a eliminação da hepatite C: a Região Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira. Devido ao elevado consumo de drogas injetáveis nos Açores, poderá esta região ser pioneira na micro eliminação da hepatite C e assim comprovar os ganhos em saúde para a região.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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