Ser ou não ser, eis a questão que não importa com Chico da Tina

O primeiro vencedor do Prémio Mimo de Música actua este sábado em Amarante. Em Outubro, a trapstar segue para a edição brasileira do festival. O skater de concertina às costas, que é tão fictício quanto real, lançou o EP de estreia, Trapalhadas, no início do mês.

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Há duas pessoas numa só: o Chico rapper e o Francisco, de 23 anos, que às vezes se confunde com o primeiro. Andreia Gomes Carvalho

O professor universitário e assessor de imprensa Manuel Dantas não é de resumir, é-lhe impossível escrever pouco, mas faz o melhor que pode para apresentar um pouco de Chico da Tina: na sua obra, há uma “fricção entre passado e presente”, “tradição e mudança, aldeia e cidade”. As suas reflexões, dignas de estante poeirenta de biblioteca, encontram-se na página do artista no Genius (um site para interpretações de letras de música). Algumas viajam do século XIX até nós, à boleia do estudo intensivo da “obra Tiniana” por outros professores, todos eles habitantes deste universo que Francisco — rejeita dar-nos o seu último nome — criou.

“É como se falassem de mim para a imortalidade”, explica. Aqui, existem “incoerências lógicas” propositadas. Há duas pessoas numa só: o Chico rapper e o Francisco, de 23 anos, que às vezes se confunde com o primeiro. Não se quer dar a conhecer, nem tão pouco indica a sua formação ou percurso, porque isso “iria catalogar” o que tem vindo a fazer. É um skater de Viana do Castelo tornado rapper, a deslizar, sobre rodas, de concertina às costas. Chico da Tina (diminutivo para Francisco da Concertina) é uma trapstar que nos deixa na dúvida, suspensos.

Acompanhámo-lo em gírias, expressões, palavras e palavrões afiados, numa “proposta meta-irónica” saída do encontro entre Minho e Estados Unidos. E a fórmula trap-e-concertina já deu frutos: foi o primeiro vencedor do Prémio Mimo de Música e isso quer dizer que, entre os candidatos, recebeu o maior número de votos. Por isso, este sábado, 27 de Julho, soltará versos com ironia q.b. no festival Mimo, em Amarante, às 20h. A directora do festival, Lu Araújo, teceu-lhe, em comunicado, alguns elogios: para além de apontar a “linguagem particular e ousada”, refere-o como “um grande artista de Viana do Castelo, com muito potencial”. Em Outubro, actuará na edição brasileira do mesmo festival. Pelo meio, há concertos em Barcelos, Cristelos (Paredes) e Lisboa.

Trap com sabor a cabidela e sarrabulho

No YouTube, Põe-te Fino está a chegar às 400 mil visualizações. Lançada há um par de semanas, Musa, onde o ouvimos a arrastar um francês sedutor que se cruza com outras línguas, tem 82 mil — é o “vídeo mais intenso de 2019!!!”, lê-se no título da faixa. O primeiro EP, Trapalhadas, é o pontapé de partida do antigo defesa-direito da União Desportiva de Lanheses. Foi lançado no início de Julho e está disponível no Bandcamp. Na capa, vê-se a camisola da selecção portuguesa com um lustroso colarinho verde, a concertina aberta com um fole dourado. Há sempre um certo cuidado estético, nem que seja nos pêlos do peito cuidadosamente aparados em forma de triângulo. “Podia virar tendência.” Fica o desafio. 

Mas ainda não se sabe muito sobre Chico da Tina. “Hoje é tudo explicado, a intimidade é violada. Quando comecei este projecto, nunca tive a intenção de me expor ou de dar entrevistas”, ressalva. No entanto, o reconhecimento do Mimo fez com que mais olhos se voltassem para Chico e a sua concertina, uma Hohner (herdou-a do pai, “um distinto tocador”). Dá “uns toques” no piano. “Dou-lhe forte nas castanholas, mas canso-me rápido. Cavaquinhos e guitarras não são para mim”, esclarece.

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Francisco ainda está para saber quem é Chico da Tina Andreia Gomes Carvalho

Tem “destreza nos dedos” para a concertina, que bem se ouve em Põe-te Fino, canção em forma de aviso quase canibal: os intestinos dão alheiras, a “pele sebosa dá um casaco jeitoso”, o resto para a panela para se manjar um arroz de cabidela. Mais apontamentos gastronómicos minhotos são apanhados noutras faixas, como Deus nos Livrai: “Mas eu arroto sarrabulho, vocês mendigam fast food.” Em GUXI, que não há cá Gucci, vai à feira do Campo da Agonia, compra “a carrinha inteira” e ciranda com “pinta e flex à maneira”. É trocar as voltas a uma das tradições no rap: a exaustiva ostentação de bens de grandes marcas.

O Chico ainda está a descobrir-se

É tudo “real” no universo de Chico, como explica, sem rodeios: “Até à data, estou inapto para rimar sobre algo mais que não as minhas próprias vivências.” Só que em ponto exagerado, quase caricatura. O seu objectivo é manter a personagem em primeiro plano. Ele tenta sintetizar este processo: “A biografia do Chico é a minha, mas alterada.” É como se fosse um exercício: brinca com a verdade, acrescentando-lhe fantasias e traços de personalidade, e cada um escolhe a sua. E isso acontece, em parte, porque Francisco ainda está para saber quem é Chico da Tina: “Há coisas que nem eu próprio sei explicar porque estou ainda a descobrir o que isto é.”

Num território onde se dilui a realidade e a ficção, afirma ser apenas uma trapstar sem aspirações a mais nenhum título: mas sê-lo acarreta explorar outros caminhos, “implica que o conteúdo seja de âmbito universal, é um símbolo que remete para muitas coisas”. Tanto é muitas coisas numa só como pode deixar de ser, jogando com a audiência. A verdade pode ser um ponto de vista. Francisco prefere trilhar um percurso alheio, com direito à privacidade, mas mostrando um pouco de si através de Chico da Tina um pouco por todo o lado.

Ele não se importa que se tente adivinhar o que há para lá do EP, do seu estilo, das poses, das letras: “Acho que é bom, só uma pessoa muito limitada encerra a sua visão. É saudável, até as coisas mais absurdas devem ser objecto de divagações.” No fundo, cada um escolhe o que quer ver e ouvir com Chico da Tina. E qualquer que seja o caminho (mais ou menos) filosófico tomado, o rapper já deixou num tema a questão que os fãs lhe podem colocar: “Chico da Tina, deixas-me ser teu amigo?"

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