Da invisibilidade às soluções: a etnicidade nos Censos

Só quando conhecermos e percebermos aqueles que ficam atrás, poderemos compreender quem somos. Aí, deixará de existir o “nós com medo deles” e as diferenças percecionadas deixarão de ser relevantes. Aí, seremos sempre primeira pessoa do plural.

Hoje é apresentada a versão final de um importante relatório sobre discriminação étnico-racial em Portugal, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República. Louvor a um estudo que assume um passo significativo ao encarar problemas sérios que carecem de soluções efetivas. No entanto, ainda faltam dados precisos e diagnósticos mais detalhados que não cabem ao Parlamento recolher, mas ao Instituto Nacional de Estatística (INE).

A universalidade dos direitos humanos protege todas as pessoas, todos os seres humanos que há no mundo, sem qualquer exceção. Os padrões internacionais contra o racismo incluíram nas suas considerações o porajmos – o holocausto dos ciganos – e enfatizaram que os genocídios nunca começam com câmaras de gás, mas sempre com discursos de ódio que desumanizam um grupo por diferenças percecionadas. Essas percepções trazem consequências reais e concretas, não só na História, como na sociedade portuguesa atual.

Há alguns anos, conheci uma mulher que desde criança teve de trabalhar para se juntar ao esforço do pão na mesa para todos na sua família. Fez apenas o ensino primário, como o seu pai. A mãe era analfabeta, à semelhança de tantas mulheres da sua comunidade.

Viu o pai migrar juntando-se a um irmão que, conta-se, partiu escondido num barco. Anos mais tarde, casou e partiu também. Teve dois filhos. Deu-lhes escola. Os dias começavam às 5h da manhã a trabalhar numa fábrica. Depois, as limpezas. Chegava a casa já passavam as 21h. De todo o sacrifício, o mais velho acabou por chegar à universidade, no culminar de anos de superação para dar aquilo que nunca teve, sem que uma única oportunidade lhe fosse dada pelo Estado a quem diligentemente contribuiu com impostos.

Neste mundo desigual, a vida podia ter persistido na falta de oportunidades para os filhos desta mulher. São poucas as histórias desta dureza que acabam em bem. Para ela, não houve igualdade. É uma história de vida comum a tantas pessoas. Mas não deixa de ser extraordinária.

O acesso à educação e a outros direitos fundamentais é essencial e é obrigação do Estado e dos seus governos garanti-los com todos os meios possíveis. As quotas podem ser percebidas neste contexto. São ferramenta de regulação que corrige um erro enquanto for necessário corrigi-lo. Mas não chegam. Numa sociedade baseada no mérito, é preciso que o mérito tenha um ponto de partida igual.

Precisamos, por isso, de dados complementares ao relatório da Comissão para perceber quais são as origens da desigualdade, da discriminação, do racismo, da xenofobia, da interioridade e da pobreza. Quem e quantos afetam? E como?

Os Censos, se não procurarem perceber esta realidade, serão uma gigantesca oportunidade perdida. Necessitamos de dados sobre etnicidade porque eles são relevantes para a matéria e para perceber se as autoridades estão a tomar as medidas corretas para garantir que todos somos iguais em dignidade, direitos e deveres.

O Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial critica sempre os países que, como Portugal, falham na recolha de estatísticas desagregadas relevantes sobre etnicidade. O que tem de ser garantido é que os dados sejam recolhidos voluntariamente e com base na autoidentificação da pessoa como pertencente a determinado grupo. Além disso, tem de haver salvaguardas sobre como são usados e armazenados. Tendo isso em conta, recolhê-los é o primeiro passo para o desenho de políticas públicas eficazes para eliminar a discriminação e evitar histórias de injustiça como a daquela mulher.

À universalidade dos direitos humanos acresce que todos nós europeus vimos de África, do Médio Oriente ou da Ásia. Vimos de gente que atravessou fronteiras – há mais ou menos séculos – e, hoje, somos daqui, do lugar onde estamos. Trazemos connosco as nossas culturas, os nossos valores e as nossas crenças. As religiões não têm dono. Do mesmo modo, assimilação, integração e inculturação não podem funcionar por anulação de uma das partes ou culturas a outras. É na pluralidade que está a nossa riqueza.

A história daquela mulher sem oportunidades e que trabalhou o dobro da vida pelos seus cabe em muitos lugares da sociedade portuguesa. Pode ser mulher negra de um bairro social, pode ser cigana, pode ser branca do interior ou das ilhas. Pode ser tanta gente que, se não a soubermos, não lhe podemos dar justiça.

Deixo a petição ao INE para que a decisão de não incluir questões sobre etnicidade possa ser revertida em tempo útil e a sugestão do grupo de trabalho da Assembleia da República seja tida em conta nos moldes expostos acima. A injustiça social nasce do abandono e este tem várias formas. Não saber, não reconhecer, não resolver são algumas delas.

Só quando conhecermos e percebermos aqueles que ficam atrás, poderemos compreender quem somos. Aí, deixará de existir o “nós com medo deles” e as diferenças percecionadas deixarão de ser relevantes. Aí, seremos sempre primeira pessoa do plural.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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