Uma cornada, a fractura e o abate: o Xeque-Mate das touradas

Nessa noite de mais um bestial espectáculo de submissão violenta de vários animais à superioridade e bestialidade humana, quatro forcados e dois cavaleiros ficaram feridos, um cavalo “teve” que ser abatido devido aos seus ferimentos e, claro, vários touros foram ritualmente chacinados.

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Nelson Garrido

Mal sabe o cavaleiro João Moura Júnior, recentemente colhido numa tourada em Coruche, que o cavalo que ele tão carinhosamente apelidou de Xeque-Mate ominosamente representa o estado em que a tauromaquia se apresenta em Portugal — em xeque, com o xeque-mate a vislumbrar-se à distância, não muito longe.

Nessa noite de mais um bestial espectáculo de submissão violenta de vários animais à superioridade e bestialidade humana, quatro forcados e dois cavaleiros ficaram feridos, um cavalo “teve” que ser abatido devido aos seus ferimentos e, claro, vários touros foram ritualmente chacinados — o habitual cardápio que não motiva notícia porque já é parte integrante desta “pedagógica actividade”, fazendo lembrar as palavras usadas pela Federação Portuguesa da Tauromaquia.

Tudo isto, tanto sofrimento, angústia e morte, para homenagear um outro senhor — Manuel Badajoz —, que era bandarilheiro e também administrava sofrimento.

Ao contrário de alguns, folgo em saber que os intervenientes humanos desta actividade não correm perigo de vida e poderão regressar às suas famílias e comunidades.

O mesmo não se pode dizer do cavalo que João Moura Jr. montava regularmente, que terá sofrido uma fractura exposta numa das patas após ser colhido por um touro em plena arena. Foi o Xeque-Mate à ciência veterinária, aparentemente, pois considerou-se que o animal não poderia ser salvo, acabando por ser abatido. Sobre as circunstâncias em que foi abatido e o diagnóstico médico-veterinário que motivou a eutanásia pouco se sabe. O certo é que esta é a realidade de muitos cavalos que são sistematicamente sujeitos ao perigo de horríveis lesões e da morte no decorrer da prática tauromáquica — e isto com o conhecimento daqueles que os montam.

É surpreendente, por isso, que João Moura Jr. tenha referido, em declarações públicas, que esta foi a pior noite da sua carreira enquanto “amante dos animais e fiel amigo” dos seus cavalos, já que teve que se despedir de um fiel companheiro com “quem trabalhava já há dez anos e mantinha fortes laços”. E que deliberadamente escolheu colocar nessa situação, à mercê do touro.

O pobre do homem lá teve que admitir que o cavalo já não lhe ia servir para coisinha nenhuma e, se existisse alguma hipótese de sobreviver e ser mantido em condições de bem-estar, provavelmente só ia andar para lá a empanturrar-se no feno e esbandalhar os subsídios do Estado e da União Europeia que tanto custam a ganhar. E, ainda para mais, uma cirurgia custaria para cima de uma dezena de milhar de euros. João Moura, como “fiel amigo dos animais”, teve que se despedir forçosamente do seu cavalo inútil e condenado. Mas não se desespere, que o mesmo já garantiu que vai fazer de tudo para encontrar outro cavalo parecido, um outro fiel amigo que sujeitará à actividade periclitante e letal, como um bom amante de animais.

As touradas encontram-se claramente em declínio em Portugal, de acordo com dados estatísticos da Inspecção-Geral das Actividades Culturais, que mostram como o número de espectáculos e de espectadores tem vindo a cair a pique de forma consistente na última década, o que não será de admirar numa sociedade cada vez mais solidária para com os animais e crítica relativamente à utilização que fazemos dos mesmos.

Mas quiçá episódios como este, que se repetem quase todos os anos, poderão ser suficientes para convencer até mesmo os mais cínicos da podridão civilizacional que a tauromaquia representa em Portugal — onde os trajes garridos, a dança marialva e a música festiva não são verniz que chegue para mascarar a violência inerente, a hipocrisia de valores e a corrupção burguesa que a definem. O feno do qual esta actividade se alimenta não poderá perdurar para sempre — e aí lembraremos novamente o Xeque-Mate.

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