Somos dos países mais lentos na Europa a aprovar medicamentos inovadores

Transformar a autoridade nacional do medicamento (Infarmed) numa entidade reguladora independente é a proposta dos peritos que assinam a edição deste ano do Relatório de Primavera do Observatório dos Sistemas de Saúde. Que sugerem ainda uma discussão “sem tabus” sobre a hipótese de fusão do Infarmed com a Entidade Reguladora da Saúde.

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Rui Gaudencio

Portugal é o terceiro, num conjunto de 26 países europeus avaliados pela indústria farmacêutica, onde a introdução de inovação terapêutica é mais lenta, apenas suplantado na demora pela Sérvia e a Lituânia. O tempo que os doentes portugueses aguardam pela aprovação de medicamentos inovadores era cinco vezes mais longo do que o dos pacientes alemães, no período entre 2015 e 2017 (634 dias cá contra 119 dias na Alemanha) e, mesmo em comparação com Espanha, estamos 1,6 vezes pior.

São dados de um estudo comparativo da associação europeia da indústria farmacêutica (EFPIA, nas siglas em inglês) divulgados no Relatório de Primavera de 2019 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) que esta quinta-feira é apresentado em Lisboa.

Os peritos que o assinam recomendam que a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) se transforme numa “entidade reguladora independente” e sugerem mesmo que se discuta “sem tabus” a possibilidade de o Infarmed e a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) serem fundidos.

Voltando aos dados da indústria farmacêutica, também na taxa de disponibilização de novos medicamentos Portugal não surge bem na fotografia, com apenas 43% das moléculas aprovadas já disponíveis no mercado, no período avaliado. “Mas é preciso colocar estes números em contexto”, avisa Rogério Gaspar, um dos coordenadores do observatório, ex-vice presidente do Infarmed, que assina este capítulo.

As autoridades públicas dos vários países, nomeadamente o Infarmed, defendem que estes dados não reflectem a “totalidade dos factos”, como o tempo de espera aos pedidos de informação que são feitos às empresas do sector, mas o problema, observa o professor na Faculdade Farmácia da Universidade de Lisboa, é que este é o “único comparador publicamente disponível”, pelo menos por enquanto. Além disso, enfatiza, mesmo que a informação tenha que ser olhada com cuidado, a diferença na demora na aprovação “não é pequena” em relação a outros países.

Quanto à proposta de transformar o Infarmed em entidade reguladora independente – a autoridade do medicamento ficaria com a avaliação técnica com impacto no preço e reembolso e deixaria para o Governo a decisão final sobre o preço e as comparticipações –, Rogério Gaspar sublinha que isto permitiria aumentar “a eficiência” e também “a transparência” do processo. “Para quem está de fora não é evidente que a entidade que realiza a avaliação técnica esteja sob a tutela hierárquica de quem decide”, justifica.

Sobre a hipótese de fusão do Infarmed com a ERS, o ex-presidente da autoridade do medicamento sublinha que é uma “mera sugestão” que permitiria que o país tivesse uma espécie de “entidade reguladora de infraestruturas e tecnologias”, ficando com “a totalidade deste universo sob o mesmo chapéu”, sem ser necessário criar um novo regulador, com as implicações legais e financeiras que isso implicaria. “Esta possibilidade já deveria ter sido debatida na praça pública, em vez de se discutir a localização do Infarmed”, remata.

Madeirenses gastam mais em antipsicóticos

No seguimento do relatório do ano passado, os peritos fazem ainda uma análise mais aprofundada sobre as assimetrias geográficas na despesa com medicamentos, que são significativas nalguns casos. Dão o exemplo dos gastos com antipsicóticos que, per capita, são três vezes superiores no distrito da Madeira em comparação com o do Porto (15,65 euros contra 5,53 euros), e, no caso dos anticoagulantes orais, mais do dobro no distrito de Coimbra face ao do Porto. Nos seis grupos farmacológicos analisados, é justamente o distrito de Coimbra que surge com uma despesa per capita global maior – 121,11 euros contra “apenas” 83,71 euros no do Porto. A nível nacional a média é de 95,61 euros.

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No extenso documento em que se faz a análise do sistema de saúde português, e que este ano se intitula “Saúde: um direito humano”, volta-se a olhar para a reforma em curso nos cuidados de saúde primários, mas agora de um ângulo diferente e com uma análise detalhada que evidencia as “virtudes” mas também os “vícios” das unidades de saúde familiar (USF), as pequenas equipas de médicos, enfermeiros e secretários clínicos que se foram constituindo voluntariamente pelo país e que, no modelo mais avançado (USF B), os profissionais são pagos pelo desempenho.

O problema é que o carácter voluntário desta reforma fez com que as USF surgissem em concelhos com uma população mais favorecida e isto “deve ser tido em conta nas comparações” de desempenho e de resultados em saúde entre os diferentes modelos, até porque as populações que cobrem são distintas, defendem os peritos.

Outro resultado perverso do carácter voluntário é o de que quase metade dos concelhos do país não têm USF, mas sim unidades de cuidados de saúde personalizados (UCSP), onde ficam os profissionais que optaram por não integrar as USF. No final do ano passado, sintetizam, as 528 USF estavam concentradas em 140 dos 278 concelhos de Portugal Continental, sobretudo no litoral. Havia então 138 concelhos onde não existe nenhuma USF.

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Internamentos evitáveis

O que a análise mais fina permitiu igualmente perceber foi que, ao olhar-se para a evolução da taxa de internamentos evitáveis da população adulta entre 2000 e 2015 por concelho, esta tem vindo a aumentar mas, pelo menos para já (os efeitos podem demorar anos a manifestar-se), não se descortina uma mudança de tendência após o início da reforma, há 13 anos. E a presença de USF também não parece ter tido “um efeito estatisticamente significativo” na diminuição da taxa de internamentos evitáveis, a não ser no caso dos relacionados com infecções do trato urinário.

Pelo contrário, nos episódios de urgências hospitalares, constatou-se que os utentes inscritos nas USF modelo A e B têm uma menor utilização em comparação com os das UCSP, mas os peritos voltam a considerar que estes resultados podem ser explicados pelas características diferentes da população inscrita.

São conclusões que apontam no sentido contrário das do relatório do ano passado, que criticou o avançar desta reforma a duas velocidades e enfatizou a necessidade de investir na multiplicação de USF? Não, responde Rogério Gaspar, notando que volta a afirmar-se que há uma assimetria na distribuição geográfica das unidades e no acesso a cuidados mais diferenciados (USF) e que a “forma lenta como a reforma tem avançado tem permitido a manutenção e, em alguns casos, agravamento das assimetrias no acesso”. 

Este ano, a coordenação do observatório não conseguiu fazer a análise do seguimento que os governos deram às propostas do ano anterior, “por constrangimentos internos”. Promete fazê-lo nos próximos anos.

O OPSS é uma parceria entre a Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, o Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, a Universidade de Évora e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

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