O imbróglio da habitação

Já percebemos que em matéria de habitação não há espaço para profecias autorrealizáveis. Pelo contrário: quanto maiores vão sendo as expectativas criadas, maior parece ser o desapontamento e o imbróglio não para de crescer.

1. O retorno da habitação à política

Em Julho de 2017, António Costa ressuscita a Secretaria de Estado da Habitação (SEH), depois de anos sem existência. Costa declara: “A habitação tem de ser uma nova área prioritária nas políticas públicas, dirigida agora às classes médias e em especial às novas gerações.” O primeiro-ministro toma as rédeas para o Governo nacional de um problema local, um problema essencialmente urbano. A criação da SEH teve lugar poucos meses antes das autárquicas, quando o debate sobre a subida dos preços em Lisboa já estava ao rubro. Esse desígnio da nova política de habitação é em grande medida concretizado no Programa de Arrendamento Acessível (PAA). A 1 de Julho de 2019, a pouco tempo das legislativas, o PAA entra em vigor.

2. O Programa de Arrendamento Acessível: como funciona?

O Programa de Arrendamento Acessível tem sido muito criticado: senhorios, inquilinos, articulistas da direita à esquerda, e muitos outros, têm manifestado o seu descontentamento. A crítica mais recente, e também a mais inesperada, veio de Fernando Medina. As críticas têm-se centrado nos critérios de elegibilidade: dos tetos máximos estabelecidos para os preços das rendas à taxa de esforço dos inquilinos, considerados irrealistas. Sobre o processo de funcionamento do programa não se tem falado. A questão vem ao de cima com a entrada em funcionamento da plataforma a 1 de Julho.

Como funciona o programa? Como se processa o encontro entre um candidato (inquilino) e um senhorio (alojamento)? Se eu me inscrever na plataforma como inquilina, tenho acesso à lista de alojamentos disponíveis que se enquadram no meu perfil para poder escolher o que mais me convém? Em caso afirmativo, sou eu que estabeleço o contacto com o senhorio? Se eu registar um alojamento de que sou proprietária, tenho acesso à lista dos inquilinos elegíveis para a renda que me foi estipulada? Em caso afirmativo, sou eu que estabeleço o contacto com o inquilino?

Estas perguntas e respectivas respostas não constam na lista das 39 que podemos consultar na plataforma. Apenas três abordam a questão de forma relativamente indireta. Duas delas, sintetizo numa: “é necessário contratar um profissional para registar uma candidatura/inscrever um alojamento?” R: “Não (...) No entanto, podem sempre recorrer aos serviços de profissionais (por ex., mediadores imobiliários) para obter apoio na realização do registo de candidatura/inscrição do alojamento.” A outra vai no mesmo sentido: “como se encontram as partes para celebrarem o contrato de arrendamento?” R: “O senhorio e os candidatos podem encontrar-se diretamente ou através de mediador imobiliário.”

Em suma, a informação é omissa relativamente à forma como se processa o encontro entre o candidato e o senhorio. Percebe-se, no entanto, que o processo pode ser iniciado com a inscrição na plataforma, e terminado com a celebração do contrato pelas seguintes figuras: os interessados, candidato e senhorio, ou através de mediadores imobiliários. Os mediadores imobiliários podem estar envolvidos em todo o processo. E, podendo, não tenhamos dúvidas que o irão fazer da melhor maneira: o seu core business é exatamente isto. O papel do Estado no processo, neste caso o IRHU (instituto diretamente responsável pelo programa), parece esgotar-se na validação dos critérios de elegibilidade do candidato e da habitação.

Para além dos desfechos mais ou menos felizes com assinalável impacto na vida dos seus beneficiários, mas que não chegarão para resolver o problema, o que está em causa é também a extensão das possibilidades de negócio dos mediadores imobiliários. Deve o Estado apoiar-se na atividade dos mediadores imobiliários mesmo com o objectivo de alargar o acesso à habitação? Os mediadores têm sido poupados às criticas feitas a investidores, promotores e senhorios, mas o seu contributo para o aquecimento do mercado de habitação não é insignificante. Admitindo que os mediadores podem, com o PAA, exercer o seu desígnio social, não teria sido mais ajustado que os termos desta parceria tivessem sido esclarecidos desde o início?

3. O anúncio salvífico de Medina

Entretanto, Medina veio relançar o seu programa de rendas acessíveis. Tendo percebido as fragilidades do PAA, Medina focou-se em duas ideias consensuais: 1) a renda deve ser calculada a partir do rendimento e não do preço da habitação, assumindo uma taxa de esforço de 30% sobre o rendimento líquido; 2) as rendas devem ser reduzidas para metade dos valores das propostas no PAA. Um statement crítico em relação ao programa, e ao Governo do seu partido, que estipula uma taxa de esforço máxima de 35% sobre o rendimento bruto, e os tais valores de rendas considerados exorbitantes.

Para o cidadão comum, este anúncio parece extemporâneo: o programa foi anunciado há quatro anos e até à data não tem nenhuma habitação concluída. Mas a questão é outra: a subida abrupta dos preços é, repito, um problema local – é o efeito colateral do sucesso da cidade, usando um conceito de sucesso durante muito tempo defendido pelo próprio Medina. Cabe em primeiro lugar à cidade resolver os efeitos colaterais do seu próprio sucesso: Lisboa viu aumentar brutalmente as suas receitas e estas devem ser aplicadas, pelo menos parcialmente, na resolução desses efeitos colaterais, e o mais grave é a habitação. Medina podia já ter feito muito mais, apostando desde o início em soluções diversificadas com tempos de execução mais consentâneos com a rapidez das transformações. Não se pede muito: pede-se uma maior responsabilização da governação local face aos moradores, potenciais moradores e utilizadores da cidade, e face à própria cidade; e, já agora, um maior sentido de solidariedade com os restantes territórios nacionais que, não tendo vivido as transformações das grandes cidades, não beneficiaram do aumento de receitas daí resultante.

4. Grandes Expectativas

No dia seguinte ao anúncio de Medina, o Governo ripostou. Se o ritmo das ofensivas e contraofensivas em torno do arrendamento acessível tivesse tradução efetiva, teríamos o problema resolvido em pouco tempo. Mas já percebemos que em matéria de habitação não há espaço para profecias autorrealizáveis. Pelo contrário: quanto maiores vão sendo as expectativas criadas, maior parece ser o desapontamento e o imbróglio não para de crescer.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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