Não um adeus, mas um etcetera (para António Manuel Hespanha)

Obrigado, Hespanha. Acho que nunca te agradecerei — nunca te agradeceremos — o suficiente. Mas aprendemos contigo o que é aprender. Aprender não é só acumular informação: é ter afeto pelas pessoas, pelas coisas e pelas ideias. E etcetera. É isso. Não um adeus, mas um etcetera.

É difícil escrever um texto como este. Pelas razões habituais: pela limitação de espaço, por escrever em cima da hora, e acima de tudo pela sua razão de ser. Morreu António Manuel Hespanha. Historiador, jurista, teórico e investigador, cidadão empenhado, cumpridor de importantes funções públicas sempre que o país precisou dele, para logo voltar ao que adorava fazer: estudar, ensinar e escrever história. Também o mestre e orientador de tantas e tantos historiadoras e historiadores, incluindo eu. Se durante anos, ao escrever, eu tinha a impressão que ele lia os meus textos por cima do meu ombro, imaginem agora. Por onde começar, então?

Assim: um dia entrei atrasado numa sala de aula e, ao contrário do habitual, toda a minha turma ria a bandeiras despregadas. Cá em baixo, no centro do anfiteatro, um professor que eu ainda não conhecia — cerca de quarenta e cinco anos, gestos vivos, voz amena e uns olhos que piscavam muito rapidamente, tão rapidamente como se estivessem a processar as ideias que lhe iam pelo cérebro — tinha a turma na mão. O nome dele era António Manuel Hespanha e houve muita coisa que mudou na minha vida a partir daquele momento. Sei que para muitos dos meus colegas há-de ter sido também mais ou menos assim.

Como explicá-lo? António Hespanha não usava da oratória típica do professor grandiloquente. Era mesmo o contrário disso. As suas intuições mais fulgurantes ou alegações mais radicais ele apresentava-as com aquele tom de voz de quem estivesse a falar de alguma coisa simplicíssima, com enorme delicadeza mas também como se não desse enorme importância ao que acabara de expor — nem que fosse uma daquelas teorias novas ou interpretações originais por que outros dariam uma carreira inteira. Por outro lado, era aos pormenores supostamente insignificantes que ele era capaz de dar enorme importância, como se nos estivesse a passar (e estava) uma lição metodológica que era ao mesmo tempo uma mensagem ética: conheçam e estudem os temas a que toda a gente atribui imensa importância, mas não se deixem encandear por eles; acima de tudo, não se esqueçam de olhar atentamente para aquilo a que os outros não ligam.

Como resultado, António Hespanha era um autor e pedagogo fascinante para os seus alunos e discípulos, intrigante e desassossegador também, para nós e para todos os outros. Por um lado, ele tinha profundo conhecimento do debate teórico, e verdadeiro prazer em introduzir nele os seus alunos — isto numa época em que muitos historiadores desvalorizavam a teoria e achavam que fazer história era só “contar as coisas que aconteceram” como se isso bastasse para as entender. Por outro lado, desenganasse-se o orientando de António Hespanha que achasse que a teoria bastava; nada lhe dava tanto gosto como dizer-nos que iríamos ter de queimar as pestanas na Torre do Tombo, e o que é mais: que iríamos agradecer-lhe por isso.

Usei “prazer” e “gosto” no parágrafo anterior, o que seria inevitável ao falar do nosso professor Hespanha. Poderia repetir essas palavras para todos os aspectos da sua atividade. Dava gosto estar com ele, e ele tinha prazer nisso: no contacto com os alunos, na orientação, na escrita, na investigação, no empenho cívico, na família, em tudo.

Seria impossível resumir aqui todos os contributos de António Hespanha na história (que era a sua verdadeira paixão intelectual) e no direito (por onde ele tinha começado a contragosto). Não seria mais fácil mesmo num texto mais longo escrito com mais tempo, porque isso me obrigaria a ser especialista de muitas áreas em que ele trabalhou seriamente e a fundo: da teoria do estado à história da expansão, do direito europeu (romano, medieval, moderno) ao império português, do estudo de temas fluidos como os afectos e os sentimentos às disciplinas mais clássicas da história das ideias ou das instituições.

É verdade que é impossível resumir. Mas recentemente, ao apresentar o seu livro mais recente, Filhos da Terra – identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa (ed. Tinta da China), António Hespanha disse uma coisa — uma das suas tiradas apresentadas modestamente para não parecer que eram tão grandes — que o resumia muito bem. Cito de memória: “Os reis de Portugal tinham aqueles títulos enormes, ‘Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.’.” Ou seja, títulos enormes que acabavam num etcetera, explicava Hespanha, para acrescentar: “Pois bem, daquele título todo o que me interessa verdadeiramente é o etcetera — estudar o império lá onde ele não chegava formalmente.” Típico Hespanha. Sempre a encontrar naquilo que já todos tínhamos visto tantas vezes uma razão nova para continuar a olhar.

Mais do que qualquer tema em particular, o que aprendíamos com Hespanha era a treinar o olhar: olhar de novo para o que pensávamos já conhecer, olhar para aquilo que outros desconsideraram, olhar de longe, olhar de perto, olhar de outra maneira. E depois levar os documentos a sério, ser rigoroso na análise, ser imaginativo nas linhas de pesquisa. E ter o prazer da partilha.

Numa época em que muitos historiadores trabalhavam em solitário ou apenas com um assistente, Hespanha distinguia-se por criar já então grandes projetos de investigação em equipa que tinham como consequência (e, sem dúvida, como intenção) dar emprego a vários jovens historiadores. Fomos muitos os que assim beneficiámos da sua visão e generosidade, que nos permitiu depois fazer doutoramentos em algumas das universidades com que antes nos limitávamos a sonhar. Um quarto de século depois, há dezenas de historiadores em vários países que tivemos o privilégio de ser discípulos dele. Como ser discípulo de António Hespanha era mais do que ter uma relação profissional, estamos agora todos e todas órfãos (e gratos à sua mulher Graça, e aos seus filhos Paula e João Pedro, por terem tido a paciência e generosidade de o partilharem connosco).

O que falta dizer? Muita coisa. Se tivesse de escolher só uma, diria: o sentido de humor. Permanente, perspicaz, desopilante. Sempre, até ao fim. Agora nas últimas semanas, enquanto acompanhávamos em conjunto a evolução do seu estado de saúde, a frase-chave que nos animava era “já anda outra vez a dizer as piadas dele”. Essas piadas com que nos regalava, que não ficam nos livros e que são verdadeiramente inesquecíveis.

Obrigado, Hespanha. Acho que nunca te agradecerei — nunca te agradeceremos — o suficiente. Mas aprendemos contigo o que é aprender. Aprender não é só acumular informação: é ter afeto pelas pessoas, pelas coisas e pelas ideias. E etcetera. É isso. Não um adeus, mas um etcetera.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

N.D.: Excepcionalmente, este texto está aberto a não-assinantes​

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